Vírus divinos ~ por Hélio Schwartsman

A cross

Na semana passada a Itália entrou com um recurso no Tribunal Europeu de Direitos Humanos para que esta corte reveja sua decisão de novembro passado de mandar retirar os crucifixos de todas as salas de aula de escolas públicas. Como o acórdão tem grandes chances de virar jurisprudência para toda a Europa, dez outros países (a maioria católicos e ortodoxos) manifestaram apoio a Roma.

Com o arrefecimento do comunismo, o embate ideológico se deslocou da economia para temas culturais. Frequentemente, questões de pouca ou nenhuma consequência prática provocam debates acalorados. A controvérsia em torno de crucifixos em tribunais e escolas é um caso paradigmático.

Para os novos iconoclastas, espaços públicos não devem ostentar nenhuma espécie de adorno religioso, sob pena de violar o princípio da laicidade do Estado, em maior ou menor grau consagrado nos países democráticos contemporâneos.

O raciocínio central é o de que membros de religiões não cristãs –e vale lembrar que mesmo algumas denominações protestantes denunciam o crucifixo como idolatria–, agnósticos e ateus podem sentir-se constrangidos com a exibição ostensiva de cruzes em espaços tão caracteristicamente republicanos nos quais sua presença é exigida por lei. Ninguém, afinal, pode alegar divergências religiosas para ausentar-se da escola ou de prestar um testemunho.

Já os tradicionalistas contra-atacam dizendo que a exposição dos crucifixos faz parte da identidade nacional de muitos países europeus e não corresponde em absoluto a uma tentativa de conversão. Ignorar o papel que o catolicismo desempenhou na formação da Itália, por exemplo, constituiria uma falsificação da história.

No mais, vários países têm cruzes incorporadas a suas bandeiras e possuem hinos nacionais que evocam Deus. Não cabe à Justiça, mas aos Parlamentos, e apenas se acharem que é o caso, modificá-los. Católicos pragmáticos sugeriram a realização de um plebiscito na Itália para decidir o futuro dos crucifixos. Escoram-se em pesquisas que apontam que 60% da população quer manter o Cristo agonizante nas salas de aula de seus filhos.

Ambos os argumentos encerram algumas verdades, mas também apresentam uma série de limites. Para começar, o princípio do laicismo nos espaços públicos é menos absoluto do que apregoam seus entusiastas. Nem mesmo a França, que sempre esteve na vanguarda do anticlericalismo, cogita de desfazer o Louvre (um museu estatal) das peças que de algum modo se relacionam com uma religião –o que deve corresponder a uns 90% do acervo. Qual juiz teria a coragem de mandar a Vênus de Milo a hasta pública para manter a “neutralidade” de um Estado que não pode sancionar os deuses pagãos?

Também não é muito exato afirmar que o crucifixo possui significações que transcendem a religião. Em termos objetivos a cruz é um método de execução bastante popular entre os séculos 6 a.C. e 4 d.C. Era utilizada por romanos, persas e egípcios.

Se alguém ousasse propor que as paredes de nossos tribunais fossem enfeitadas por forcas ou cadeiras elétricas provocaria indignados e justos protestos. Não é preciso recorrer a manuais de estética para constatar o mau gosto de uma iniciativa como essa. Se nós deixamos de ver a cruz como um instrumento de tortura, é apenas e justamente porque ela se tornou o símbolo maior do cristianismo, caráter que lhe é indissociável.

Acho importante destacar mais uma vez a desimportância dessa discussão. Para falar um português bem claro, tudo não passa de uma tremenda de uma bobagem. Eu, que sou ateu de carteirinha, jamais me senti constrangido por ter de entrar numa sala que dependure os pedaços de pau entrelaçados. Na verdade, não conheço ninguém que fique, mas admito, é claro, essa possibilidade.

Também a reação dos religiosos me parece despropositada. Se a Corte mantiver sua posição de que as cruzes ferem os direitos das minorias não cristãs e mandar retirá-las das escolas e tribunais, isso em nada diminuirá o papel da religião para os fiéis. É preciso muita paranoia para ver aí uma golpe contra Deus, o qual, de resto, se tem apenas uma fração poderes que os crentes lhe atribuem, seria plenamente capaz de defender-se sozinho.

A insistência na manutenção me remete a um livro que acabo de ler. Trata-se de “The God Virus”, de Darrel Rey, psicólogo e estudioso das religiões, que percorreu uma trajetória suave até o ateísmo. Criado num ambiente fundamentalista, ele se tornou mestre em estudos religiosos por um seminário metodista. Foi aos poucos se afastando da igreja. Com 30 anos, havia se tornado agnóstico e, aos 40, já era ateu.

“The God Virus” não é uma obra excepcional, mas traz alguns “insights” interessantes. A estrutura é até bem simples. Rey abraça a tese de Richard Dawkins de que existem complexos de unidades culturais (os memes) que são capazes de reproduzir-se, mutar, evoluir e morrer exatamente como seres vivos e a aplica à religião, com especial cuidado com as relações interpessoais sob a batuta divina.

Num resumo grosseiro, como diz o título, o autor equipara deuses a vírus. E é o próprio Rey quem lembra que nem todos os vírus são patológicos. Nós podemos viver relativamente bem com vários deles, embora existam alguns tipos extremamente parasitários.

Há vários pontos do livro que seria interessante destacar, mas me limito ao papel dos vetores. Religiões precisam de um veículo para infectar as mentes dos humanos que reproduzem e executam suas ideias. E eles existem aos borbotões. São os próprios pais que introduzem seus filhos nos mistérios de sua crença. Os mais eficientes desses vetores, entretanto, são os sacerdotes, pastores, padres, rabinos imãs etc. Eles, mais do que os fiéis ordinários, se dedicam a converter pessoas e preservar a “pureza” do DNA religioso, para que não seja conspurcado por mutações que possam descaracterizá-la.

Vale lembrar que isso já ocorreu. O cristianismo, por exemplo, se apropriou de genes de outros credos e teve tanto sucesso que acabou por matar muitas das fés das quais emprestou elementos. Um exemplo simples é o mitraísmo, do qual foi retirado o mito do nascimento virginal. O culto a Mitra, que era tão popular entre os legionários romanos, pereceu esmagado pela conversão do império àquela forma exótica e não tribal de judaísmo que ficou conhecida como cristianismo.

Uma observação curiosa (e de alto poder explicativo) do autor diz respeito aos escândalos de abusos sexuais por padres católicos. Vetores exigem um alto investimento do vírus para ser criados. Eles precisam ser treinados, o que exige tempo e consome recursos. Uma vez formados, devem ser mantidos e protegidos, exceto em algumas poucas situações em que o vetor se torna mais poderoso morto do que vivo, hipótese em que os chamamos de santos e mártires.

De um modo geral, porém, vetores são mais valiosos do que fiéis comuns. E isso explica o fato de a igreja não ter pensado duas vezes antes de criar toda uma rede de proteção e acobertamento para os padres que abusavam da garotada, ainda que, nominalmente, a religião exista para garantir a salvação do praticante.

E é justamente aí que reside o que, a meu ver, é o ponto central da obra de Rey. As religiões, como prevê o modelo dos memes, existem apenas para manter vivo, ativo e tão puro quanto possível o DNA de seu Deus. Todo o resto é adorno. E cada milímetro de espaço religioso (no qual o vírus possa reproduzir-se) vale a pena. Daí a insistência na manutenção dos crucifixos.

E, já que voltamos a esses aparelhos de tortura que tanto mobilizam as almas das pessoas, creio que precisamos buscar a solução para o problema fora da lógica da propagação viral. Diante da aporia entre religiosos e secularistas, deveria prevalecer a regra da boa educação: se nem todos que estão obrigados a comparecer às escolas públicas e aos tribunais são cristãos, é impolido impor-lhes essa imagem. Paredes nuas não são, afinal, tão feias assim.

Fonte: Folha SP, 08 jul 10

Deixe uma resposta