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A pedagogia da travessia ~ Rubem Alves

A menina que me conduzia pela Escola da Ponte na minha primeira visita me disse que na sua escola não havia professores dando aulas. Espantei-me. Nunca me havia passado pela cabeça que houvesse escolas em que professores não davam aulas. Pois as aulas não são o centro mesmo da atividade escolar? As aulas não são o método que as escolas usam para transmitir saberes? E os professores não são os portadores desses saberes? Todo mundo sabe que a missão de um professor é “dar a matéria”… As escolas existem para que as aulas aconteçam… E agora essa menininha me diz que, na sua escola, não havia professores dando aulas e ensinando saberes…

E mais: naquela escola, as crianças não ficavam separadas em espaços diferenciados, de acordo com seu adiantamento: os miúdos ficavam misturados aos graúdos… Mas a separação dos alunos segundo os seus saberes não seria uma exigência da ordem e da eficácia?

Disse ainda que não havia nem provas nem notas. Mas a avaliação… Como se pode avaliar o que foi aprendido se não há provas? Provas são instrumentos de avaliação! Continue lendo

A menina e o pássaro encantado ~ Rubem Alves

Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.

Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado.

Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão-se embora para nunca mais voltar. Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades… As suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava. Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão…

— Menina, eu venho das montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que vi, como presente para ti…

E, assim, ele começava a cantar as canções e as histórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.

Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.

— Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. As minhas penas ficaram como aquele sol, e eu trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes. Continue lendo

Sobre Política e Jardinagem ~ Rubem Alves

Autumn on the park

De todas as vocações, a política é a mais nobre. Vocação, do latim vocare, quer dizer chamado. Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um ‘fazer’. No lugar desse ‘fazer’ o vocacionado quer ‘fazer amor’ com o mundo. Psicologia de amante: faria, mesmo que não ganhasse nada.

‘Política’ vem de polis, cidade. A cidade era, para os gregos, um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.

Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam com cidades: sonhavam com jardins. Quem mora no deserto sonha com oases. Deus não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu ‘o que é política?’, ele nos responderia, ‘a arte da jardinagem aplicada às coisas públicas’.

O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos. Seu amor é tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia plantar para si mesmo. De que vale um pequeno jardim se à sua volta está o deserto? É preciso que o deserto inteiro se transforme em jardim. Continue lendo