[Haiti] ”As pessoas pensam que estão amaldiçoadas”

Foto: Emilio Morenatti/AP

A epidemia de cólera, inédita no Haiti em mais de 100 anos, causou mais de mil mortos e se soma aos desastres do terremoto e às inundações.

[Texto de Óscar Gutiérrez, publicado no El País em 16 nov 2010 e no IHU em 18 nov. Tradução de Moisés Sbardelotto.]

Os haitianos olham com maus olhos para o Meille, rio junto ao qual os soldados nepalenses da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti – Minustah estiveram acampados e um dos possíveis focos da cepa que espalhou a cólera pelo país.

“Desde que apareceu o surto, os haitianos estão preocupados com a sua origem”, explica por telefone, de Porto Príncipe, o colaborador da organização Internews Yvens Rumblod. Jornalista haitiano de 21 anos, Rumbold explica que muitos haitianos responsabilizam os militares nepalenses pela epidemia. “Precisam saber de onde vem o surto, e isso explica por que eles vão às ruas. Haverá mais manifestações”.

Com mais surpresa do que esse jornalista local, Suranga Mallawa, do escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos, insiste que “os haitianos só querem saber a origem da epidemia”. Mallawa, que chegou ao país após o terremoto do dia 12 de janeiro e voltou diante da chegada do furacão Tomás – que deixou 21 mortos com a sua passagem –, afirma que, para a maior parte dos haitianos, “só os estrangeiros podem ter trazido a enfermidade”. Ao desconhecimento, campo de batalha das ONGs, Mallawa une outro sentimento que reforça a epidemia, a impotência: “Esperavam voltar aos seus lares depois do tremor e não puderam”.

“Os episódios de violência vão aumentar”

Mas os confrontos entre a Minustah e os manifestantes não se reduzem ao Cabo Haitiano, como relata Dana van Alphen, da Organização Mundial da Saúde. “Os episódios de violência se estenderam a outros lugares do país e vão aumentar”, se aventura a prognosticar essa colaboradora. O Haiti vive seu terceiro drama – após o terremoto do dia 12 de janeiro e a passagem do furacão e as inundações – em apenas 10 meses submerso em um clima de ignorância e desconfiança.

“Eles têm medo até de tocar nos pacientes de cólera”, explica Van Alphen, que exemplifica esse estado de nervos com a negativa de um grupo de desalojados pelo terremoto em Porto Príncipe diante da instalação de uma equipe de prevenção. “Acreditavam que seria um foco de contágio”.

Mais de 100 anos depois do último surto de cólera, a doença se apresentou no Haiti como algo novo e desconhecido, fantasma que fez reviver em muitos cidadãos o drama do terremoto. “Após o tremor, muitos haitianos se sentiram muito culpados por não terem enterrado corretamente os seus familiares”, explica Pauline Peenairt, trabalhadora da ONG Acción contra el Hambre – ACH. “Com a cólera, está acontecendo a mesma coisa. Eles foram surpreendidos e não estavam preparados (…) As pessoas acreditam que a cólera está relacionada com o vudu, que [os doentes] estão amaldiçoados”.

O sentimento de insegurança que complicou a primeira reação de emergência após o terremoto volta às mentes dos haitianos. “É uma insegurança mental, física e material”, afirma Peenairt, que, no entanto, aproveita para esclarecer que essas emoções não se voltaram contra os colaboradores nem as organizações humanitárias.

“Quando estou em campo – continua a trabalhadora da ACH – não sinto uma irritação real contra as ONGs. Não é ódio contra a ocupação estrangeira, mas sim um mecanismo psicológico pela falta de informação”. Nesse mesmo sentido, Julien Schindall, da organização britânica Oxfam Internacional, acredita que a falta de experiência com uma doença como a cólera é o que está fazendo brotar a violência. “Os haitianos estão assustados, nem sequer sabem que a cólera tem tratamento, precisam de mais informação”. E mais do que dados úteis sobre a epidemia, o que os haitianos agora podem ler nas ruas são cartazes políticos para os comícios do dia 28 de novembro.

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