A caravana da cocaína no Sahel ~ by Anne Frintz

No meio do caminho entre a América Latina e a Europa, o oeste da África se tornou um centro comercial do tráfico de cocaína. Em todo itinerário que percorre, o dinheiro do comércio de drogas permite comprar numerosos intermediários, especialmente políticos, e contribuiu para a desintegração dos Estados.

[Anne Frintz*, Le Monde Diplomatique, 1 mar 13] Em novembro de 2009, um Boeing 727 vindo da Venezuela pousava em Tarkint, localidade perto de Gao, no nordeste do Mali. Ele transportava entre 5 e 9 toneladas de cocaína, que nunca foram encontradas. Depois de descarregada, a aeronave falhou na decolagem e pegou fogo. O inquérito revelou que entre os envolvidos estavam uma família libanesa e um empresário mauritano que fizeram fortuna com o comércio de diamantes angolanos.

Como um aparelho dessa envergadura, além de outros mais modestos, e tamanhas quantidades de cocaína conseguem passar por uma região que, embora desértica, é povoada e administrada? De acordo com um analista político francês especialista em Sahel, que prefere manter o anonimato, estão envolvidos um ministro e altos dignitários do Exército e dos serviços de inteligência, próximos do ex-presidente Amadou Toumani Touré (conhecido como ATT), além de deputados do norte malinês. “Essa é a questão delicada. Ela toca o centro do poder”, declara nossa fonte. “Com o fim do regime de ATT, oficiais superiores do Exército do Mali e dos serviços de inteligência relacionados a esse tráfico ficaram totalmente deslegitimados. Essa é uma das razões pelas quais soldados e oficiais subalternos participaram do golpe de Estado de março de 2012. Os altos graduados possuíam um parque automobilístico que não poderiam pagar nem se desviassem todo o orçamento do Exército.”

“O tráfico traz benefícios substanciais: apoio nas eleições, compra de imóveis vinculada à lavagem de dinheiro… Várias personalidades políticas pactuavam com os traficantes. Se um militar fosse excessivamente zeloso e parasse um comboio, recebia um telefonema de um supervisor com a ordem de deixar passar. Foi o que aconteceu na fronteira com a Guiné, quando Ousmane Conté, filho do presidente desse país, foi parado por tráfico de narcóticos”, insiste o profissional, que viaja com frequência para a região do Sahel. “ATT fechou os olhos, deixou as coisas se deteriorarem. O regime malinês é um dos mais corruptos da África Ocidental.”

Grande fator de desestabilização

Simon Julien,1 pesquisador francês também especialista em Sahel, deu detalhes da competição, no norte do Mali, em 2012, entre populações com e sem acesso a renda. Financiando generosamente, com dinheiro das drogas, vários grupos de oposição aos tuaregues de Ifoghas, o regime tinha a esperança de sufocar as rebeliões tuaregues. Erro de cálculo. O influxo de armas da Líbia e de combatentes islâmicos precipitou a divisão do Mali. O peso do dinheiro das drogas na desestabilização de toda a sub-região não deve ser subestimado.

Em Lagos, capital da Nigéria, o primeiro laboratório de fabricação ilícita de anfetaminas e metanfetaminas foi desmantelado em junho de 2011. Em Cabo Verde, em outubro do mesmo ano, 1,5 tonelada de cocaína foi apreendida numa praia da ilha de Santiago. Em junho de 2010, 2 toneladas do pó branco foram descobertas num entreposto de pesca de camarão na Gâmbia. Em abril de 2011, em Cotonu, 202 quilos de heroína foram confiscados em um contêiner marítimo proveniente do Paquistão, aparentemente com destino à Nigéria. Embora a Cannabis, única planta ilegal produzida localmente, continue a ser a droga mais difundida, ela serve apenas ao consumo local. As drogas sintéticas, cocaína e heroína, visam a mercados mais distantes: Europa, Japão e até China.

Desde 2004, o oeste da África tem sido uma importante plataforma de tráfico, armazenamento e distribuição de cocaína. Ela fornece ao mercado europeu entre um oitavo e um quarto de seu consumo: 21 toneladas sobre 129 toneladas, em 2009, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês). Proximidade geográfica entre países produtores e destinatários finais, logística e mão de obra baratas, fragilidade da fiscalização e do aparelho repressivo e legislativo, corrupção endêmica e barata, impunidade generalizada: a sub-região oferece aos traficantes internacionais um leque de vantagens comparativas que desafia qualquer concorrência.

A meio caminho entre América do Sul e Europa, o novo “entreposto” recebe os produtos dos principais países que cultivam e fabricam cocaína no mundo: Colômbia, Peru e Bolívia. E abastece a Europa, segundo maior mercado consumidor mundial de cocaína, estimado em US$ 33 bilhões em 2012 – apenas 4 bilhões a menos do que o mercado mais polpudo, a América do Norte. A cocaína ganhou o posto de segunda droga mais consumida na Europa, logo após a maconha, com 4,1 milhões de usuários em 2008 – pouco menos de 1% dos europeus.

Esse próspero tráfico é considerado por muitas organizações internacionais, entre elas o UNODC e a Comissão Internacional de Controle de Narcóticos (INCB, na sigla em inglês), como um fator essencial de desestabilização da África Ocidental. A crise econômica e as políticas impostas pelo FMI e o Banco Mundial agravaram a ilegitimidade da maioria dos poderes. O dinheiro ali já comprava tudo antes mesmo que a sombra de uma tonelada de cocaína fosse avistada; mas a instalação de criminosos internacionais, trabalhando com somas consideráveis, só agravou a situação.

“A criminalidade transnacional organizada tem uma abordagem comercial: ela busca o menor risco. Os traficantes procuram as melhores rotas: aquelas onde seu jogo de influências – das ameaças de morte ao assassinato – e a corrupção lhes permitem circular livremente”, explica Pierre Lapaque, diretor do UNODC para o oeste da África. Comparável em termos de valor ao contrabando de petróleo e de armas, o tráfico de cocaína é um dos mais rentáveis. Em 2012, ele teve um grande peso na região: 900 milhões de euros de lucro, sendo 400 milhões lavados e gastos ali mesmo; isso para umas 30 toneladas de cocaína, de acordo com o UNODC em Dacar (Senegal). Em comparação, em 2012, o orçamento da Guiné-Bissau, importante ponto de passagem, não excedeu 177 milhões de euros.

A cocaína está entre os produtos que geram maior valor agregado: o quilo comprado por 2 mil a 3 mil euros nas áreas de produção vale 10 mil nas cidades do litoral do Atlântico, 12 mil nas capitais do Sahel, 18 mil a 20 mil nas cidades da África do Norte e entre 30 mil e 45 mil nas metrópoles europeias, de acordo com o especialista francês na região do Sahel já mencionado. E esses são preços do mercado atacadista, que se referem a um produto cujo grau de pureza vai diminuindo ao longo do circuito.

Golpe de Estado na Guiné-Bissau

Quais são as consequências da instalação, no norte do Mali, de grupos como o Movimento pela Unidade e a Jihad na África Ocidental (Mujao), a Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI) ou o Ansar Dine? A AQMI e o Mujao2 participam do tráfico: cobram pedágio dos comboios de cocaína que atravessam os territórios sob seu controle e, por uma taxa, garantem sua proteção.3 Enquanto a AQMI tira apenas uma pequena parte de suas receitas das drogas – o comércio de reféns lhes rende bem mais –, o caso do Mujao é outro. Mas, paradoxalmente, a divisão do país não facilitou os negócios. “Embora um Estado fraco seja uma vantagem para os traficantes, a desorganização completa do território torna-se perigosa”, argumenta nosso especialista em Sahel. “Sem um apoio de confiança dentro do Exército e da polícia, ou entre os políticos locais e nacionais, a segurança dos lotes de cocaína não está garantida. Mesmo que você tenha acordos com todos os grupos jihadistas e o MNLA [Movimento Nacional de Libertação do Azawad] no norte, ainda corre o risco de ser atacado.” É por isso que os traficantes decidiram se estabelecer no vizinho Níger: “Em Arlit e Agadez, redes se formam. Cada vez mais traficantes se deslocam do Mali e do Níger”, declarou o político nigeriano já citado.

Apesar de todos os seus sobressaltos, um país não afugentou os traficantes: Guiné-Bissau. Em 15º lugar na lista de Estados falidos, logo atrás da Nigéria, de acordo com oFailed States Index 2012[Índice de Estados falidos 2012], ela é um dos principais balcões de cocaína da África Ocidental. Em 2007, a Drug Enforcement Administration (DEA) norte-americana estimava que a cada noite, por via aérea, de 800 a 1.000 quilos de cocaína entravam em seu território. Instalações aeroportuárias e portuárias, e até ilhas, haviam sido arrendadas aos traficantes, com o conhecimento do governo local, que jogou a responsabilidade para o Exército.

“Em quase todos os casos ocorridos entre 2006 e 2007, nas apreensões de 1 ou 2 toneladas de cocaína, nenhum processo foi instaurado. E, mesmo quando foi, nenhuma condenação foi pronunciada”, relata um especialista francês em Guiné-Bissau. “Na Guiné-Bissau, o tráfico resulta de negociações entre o Exército e o poder civil. Os militares dizem: ‘Os civis que usam terno e gravata e dirigem poderosos 4 × 4 na cidade mamam no dinheiro do FMI e das instituições internacionais; para nós, sobra o tráfico de drogas!’.” Embora o dinheiro que o Exército ganha com o tráfico lhe permita uma autonomia em relação ao poder civil, as drogas são para ele um recurso entre outros: “Há também o controle de licenças de pesca, por exemplo, das grandes pirogas aos barcos de empresas internacionais. Entre a extorsão e a tributação”, avalia o pesquisador.

Após uma calmaria que vinha desde 2008, oficiais dos serviços de combate às drogas europeus observaram, no início de 2012, a chegada de muitas toneladas de cocaína, sempre com a cumplicidade dos militares, incluindo o chefe de Estado-Maior, Antonio Indjai, e o chefe da Aeronáutica, Ibrahima Papa Camara. Pistas de pouso no coração da Guiné-Bissau, às vezes até estradas, servem de aeroporto. “O Exército garante a logística e a proteção das aeronaves: pistas, querosene, armazéns etc. É a DHL!4 Ele não está envolvido na organização do tráfico de narcóticos nem em sua revenda: é apenas um prestador de serviços”, esclarece ainda nossa fonte especializada em Guiné-Bissau.

Para essas operações, os traficantes internacionais de cocaína – principalmente os sul-americanos – e os líderes civis e militares da Guiné-Bissau forjaram uma aliança de altíssimo nível. Carlos Gomes Júnior (“Cadogo”), ex-primeiro-ministro guineense preso durante o golpe de Estado de abril de 2012, era suspeito de dar cobertura ao tráfico, lucrando com isso. “As suspeitas sobre Gomes remontam a 2008, quando um navio desapareceu com a carga. Ele foi acusado de estar por trás do incidente. O caso foi arquivado”, recorda o analista. E o golpe? “Nem tudo está ligado às drogas”, filosofa Lapaque, “mas esse é um elemento que deve ser levado em conta. Qualquer coisa que entrave o bom funcionamento dos negócios é eliminada.”

Em 2011, Indjai neutralizou seu rival, o contra-almirante José Américo Bubo Na Tchuto, então chefe de Estado-Maior da Marinha, atribuindo-se a autoridade sobre os portos. Incluído na lista negra das pessoas consideradas pelos Estados Unidos como relacionadas ao tráfico internacional de drogas, Bubo foi depois libertado em favor do golpe em 2012, mas parece até o momento fora de cena. Estima-se que o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, próximo a Gomes Júnior, se uniu ao golpe de Estado no último minuto, sabendo que era melhor estar com os seus, os militares, um conglomerado de clãs que designam eles próprios o seu chefe.

Contrabando de petróleo na Nigéria

Incentivado pelos opositores de Cadogo e conduzido pela base do Exército, o golpe de abril de 2012 tem muitas outras causas que não o tráfico de cocaína: acusações de fraude eleitoral, tensões históricas entre as alas civil e militar do poder, reivindicações comunitárias dos balantas – grupo étnico majoritário no Exército – e demanda por mais reconhecimento da parte de Bissau, a capital autônoma. O medo da reforma do setor de segurança (RSS) que Gomes Júnior pretendia realizar teve um peso especial: era uma reforma que os militares não queriam, pois os levava à aposentadoria e até ao desemprego, com garantias mínimas (pensões irrisórias, propostas de reconversão pouco convincentes). Após o golpe, o tráfico de cocaína pareceu um pouco lento por conta da confusão reinante – tendência observada a cada transtorno sério. Mais uma razão para não atribuir o golpe de Estado guineense apenas ao tráfico de drogas.

Embora seja inegável que a cocaína tenha se tornado a nova renda de certas elites da África Ocidental – assim como a maconha representa uma cultura comercial alternativa para os camponeses do continente –, seu impacto sobre os conflitos de amplitude nacional deve ser relativizado. O dinheiro da cocaína os alimenta, mas não parece ser a questão principal. O controle do tráfico e dos territórios que ele atravessa certamente está no centro das rivalidades e dos ajustes de contas entre Indjai e Bubo na Guiné-Bissau, ou entre os tuaregues e outras populações no norte do Mali antes de 2012. No entanto, os militares e civis guineenses no poder, ou os islamitas armados que afluem para o Mali, bem como a nova equipe localizada em Bamako, utilizam-no sobretudo como ferramenta para a conquista de objetivos políticos.

Aliás, as malversações na cúpula dos Estados da África Ocidental não dizem respeito somente ao tráfico de cocaína. Apontada em razão de suas consequências sanitárias e de seu impacto nas sociedades europeias, a droga coloca muito oportunamente em segundo plano, por exemplo, a desestabilização provocada pelo contrabando de petróleo, mais socialmente aceitável, no leste da Nigéria, e permite que os Estados justifiquem políticas repressivas contra os traficantes de rua e viciados, enquanto manifesta uma total inércia em termos de desenvolvimento econômico e social.

Jornalista em Dacar (Senegal)

Ilustração: Samuel Casal

1. Simon Julien, “Le Sahel comme espace de transit des stupéfiants. Acteurs et conséquences politiques” [O Sahel como espaço de trânsito de narcóticos. Atores e implicações políticas], Hérodote, n.142, Paris, mar. 2011.

2. A participação do Ansar Dine não está provada.

3. Abdelkader Abderrahmane, “The Sahel: a crossroads between criminality and terrorism” [Sahel: no cruzamento entre a criminalidade e o terrorismo], Actuelle de l’IFRI (Instituto Francês de Relações Internacionais), 10 out. 2012.

4. Empresa especializada no transporte internacional de correspondências e mercadorias (a sigla é formada pelas iniciais dos sobrenomes dos fundadores, Adrian Dalsey, Larry Hillblom e Robert Lynn).

Deixe uma resposta