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A caravana da cocaína no Sahel ~ by Anne Frintz

No meio do caminho entre a América Latina e a Europa, o oeste da África se tornou um centro comercial do tráfico de cocaína. Em todo itinerário que percorre, o dinheiro do comércio de drogas permite comprar numerosos intermediários, especialmente políticos, e contribuiu para a desintegração dos Estados.

[Anne Frintz*, Le Monde Diplomatique, 1 mar 13] Em novembro de 2009, um Boeing 727 vindo da Venezuela pousava em Tarkint, localidade perto de Gao, no nordeste do Mali. Ele transportava entre 5 e 9 toneladas de cocaína, que nunca foram encontradas. Depois de descarregada, a aeronave falhou na decolagem e pegou fogo. O inquérito revelou que entre os envolvidos estavam uma família libanesa e um empresário mauritano que fizeram fortuna com o comércio de diamantes angolanos. Continue lendo

A verdadeira blasfêmia no caso Pussy Riot ~ Slavoj Žižek

O que é uma modesta provocação obscena das Pussy Riot numa igreja, comparada com a acusação contra elas, esta gigantesca e obscena provocação do aparelho de Estado que escarnece de qualquer noção de lei e ordem decentes?

[Slavoj Žižek, publicado em Dangerous Minds. Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net]

Para já, o resultado das medidas opressivas é que Pussy Riot se tornou um nome familiar literalmente em todo o mundo.

As Pussy Riot são acusadas de blasfêmia e de ódio à religião? A resposta é fácil: a verdadeira blasfêmia é a própria acusação do Estado, formulando como crime ou ódio religioso algo que foi claramente um ato político de protesto contra a claque governante. Recordem a velha ironia de Brecht na Ópera dos Três Vinténs: “O que é roubar um banco, comparado com fundar um banco?” Em 2008, Wall Street deu-nos a nova versão: o que é roubar um par de milhares de dólares, pelos quais se vai parar à cadeia, comparado com a especulação financeira que priva dezenas de milhares de pessoas das suas casas e poupanças, e é recompensada pela ajuda do Estado de grandeza sublime? Agora, temos outra versão, vinda do poder do Estado da Rússia: o que é uma modesta provocação obscena das Pussy Riot numa igreja, comparada com a acusação contra as Pussy Riot, esta gigantesca e obscena provocação do aparelho de Estado que escarnece de qualquer noção de lei e ordem decentes? Continue lendo

Política higienista? Não, dever constitucional ~ por Cappelletti, Melo e Borges

[Folha SP, 14 jan 12] Quando o governo procrastina, o resultado é quase sempre desastroso. O descalabro da cracolândia é um desses casos.

Há 15 anos, algumas ruas do centro velho de São Paulo foram tomadas por uma nova droga, o crack. Durante o dia, os usuários desapareciam. Escondiam-se em canteiros de avenidas, em hotéis baratos e em organizações não governamentais (na maioria dos casos, religiosas).

À noite, quando as lojas se fechavam, como no clipe “Thriller”, de Michael Jackson, maltrapilhos e moribundos “surgiam”. Hordas de “batmans”, enrolados em cobertores, atacavam transeuntes e moradores para poder levar algo que permitisse comprar pedras de crack.

Autoridades? Sim, a Polícia Militar fazia rondas. Às vezes, fazia abordagens ou um estardalhaço com algumas dezenas de homens. Continue lendo

Da educação mercadoria à certificação vazia ~ por Andrea Harada Souza

Enquanto não houver uma mudança radical, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor.

[Le Monde Diplomatique Brasil, 1 dez 11] O ensino superior, público e privado, no Brasil passou por grandes transformações nas últimas décadas. Essas mudanças – travestidas de democratização, por favorecerem o acesso – visaram atender a uma proposta de privatização e barateamento da educação.

O Ministério da Educação (MEC) alardeia números, sobretudo para organismos internacionais – que obrigam o país a se enquadrar em padrões estipulados por eles na competição do mercado de consumo, trabalho e pesquisa –, que demonstram o crescimento do acesso ao ensino superior, ainda que distantes daqueles objetivados pelo Plano Nacional de Educação (PNE) (o acesso é de apenas 13,8% dos jovens, entre 18 e 24 anos). Porém, esse suposto processo de inclusão tem facilitado, para além do aceitável, um crescimento vertiginoso das instituições de ensino superior (IES) privadas, com desdobramentos que passam pela precarização do trabalho docente e pela formação duvidosa que essas empresas têm oferecido aos alunos por ela formados.

A predominância de objetivos economicistas em detrimento dos pedagógicos nas IES privadas permitiu um fenômeno relativamente novo no Brasil: a formação de conglomerados educacionais, grandes empresas, de capital aberto e com forte participação de grupos estrangeiros em seu quadro de acionistas. A autorização para funcionamento dessa espécie de oligopólio do setor educacional tem intensificado a visão mercantil da educação superior no Brasil. Os exemplos mais representativos desse modelo de organização empresarial na educação ficam por conta dos grupos educacionais Kroton-Pitágoras, Estácio de Sá, SEB (Sistema Educacional Brasileiro) e Anhanguera Educacional. Esta última, com a recente aquisição da Uniban, passou a ser o maior grupo educacional do país, atendendo aproximadamente 400 mil alunos em campiespalhados por diversos estados brasileiros. Além disso, manteve sua projeção de crescimento de atingir 1 milhão de estudantes em cinco anos, segundo matéria do Valor Econômico de 17 de novembro de 2011. Continue lendo

Cómo separar la Iglesia del Estado

[Mariana Carbajal, Página 12, 21 nov 11] De paso por Buenos Aires, Micheline Milot contó cómo la Corte Suprema de Canadá viene marcando límites a los intentos de grupos religiosos de imponer sus ideas. El aborto, el matrimonio igualitario, el velo de las musulmanas, el multiculturalismo.

“Cada vez que existió un intento de la Iglesia Católica de ejercer un poder indebido sobre los individuos en Canadá, las sentencias de la Corte Suprema siempre hicieron recordar que en nombre de la igualdad el Estado debía ser neutro”, destacó la socióloga canadiense Micheline Milot, durante una conferencia que brindó en Buenos Aires sobre “Estado laico, religión y diversidad cultural”, en su país. Profesora en el Departamento de Sociología de la Universidad de Québec, en Montreal, Milot es miembro del grupo Sociedades, Religión y el Laicismo en el Centre National de la Recherche Scientifique de París, y experta en el tema en el Consejo de Europa. Con tono didáctico, dio ejemplos de los límites que viene marcando el tribunal supremo a los intentos de grupos religiosos de imponer sus valores o preceptos morales en políticas públicas. Y despertó en el auditorio un sentimiento, tal vez inesperado para ella: envidia. Además, Milot explicó las razones del éxito del multiculturalismo en Canadá, donde –a diferencia de Francia– a las mujeres musulmanas se les permite llevar el velo islámico en espacios públicos como escuelas y hospitales. Continue lendo

Fé e política: de novo? ~ por Jung Mo Sung

Church from Macedonia

Eu sou de uma geração de cristãos que foi marcada intensamente pelo debate sobre “a fé e a política”. Na década de 1980, ser um cristão que assumia a tarefa de anunciar a boa-nova de Jesus ao mundo e de “construir” o Reino de Deus era sinônimo de discutir e fazer política. Como diziam os teólogos e assessores das pastorais de então, a política é o campo da luta pelo bem comum e justiça social e as comunidades cristãs devem participar dela.

Falo disso não por um saudosismo, que sempre tende a pintar o passado melhor do que foi e assim vê o presente pior do que é. Mas porque penso que devemos -ou podemos- aproveitar as semanas que precedem a eleição e refletirmos sobre a fé cristã, o compromisso com justiça social e a política.

Eu penso que um dos diversos equívocos que cometemos no passado, no meio de boa vontade e de muita doação e luta, foi o de confundir os distintos campos que compõe a relação entre a fé, o compromisso social e a política. Muitos de nós pensávamos que não há diferenças qualitativas entres eles. Ser cristão, membro de uma comunidade de fé, significava assumir o compromisso de “construir” o Reino de Deus. E a “construção” do RD passava necessariamente pelas lutas sociais em favor dos pobres; e todas as lutas eram vistas como política, sem uma distinção clara entre lutas sociais e a ação política, ou entre o campo da sociedade civil e a esfera da sociedade política. Assim, a fé e a política eram vistas como inseparáveis e, em alguns lugares, como indistinguíveis. Por isso, muitas vezes se pensava que falar de política era já anunciar o evangelho.

Eu continuo com a convicção de que ser cristão, ser seguidor de Jesus de Nazaré, é anunciar a boa-nova (evangelho) aos pobres, a boa-nova da libertação de todas as formas de opressão que pesam sobre excluídos/as de todo o mundo. E não se pode fazer isso sem tomar parte nas lutas e/ou ações sociais, ao lado das vítimas de sistemas econômicos, políticos, sociais e culturais opressivos e excludentes.

Contudo, devemos tomar cuidado para não cair no erro de não perceber as diferenças que existem nas dinâmicas e nas identidades entre as comunidades de fé, lutas sociais e o campo da política e Estado.

Essa confusão está bastante presente na sociedade e também no interior das comunidades cristãs “engajadas” nas lutas sociais. Em grande parte, por causa da concepção de política como “bem comum” tão difundida nos inúmeros cursos e materiais espalhados Brasil afora. Como as comunidades devem lutar pelo bem comum, essa luta se dá majoritariamente no campo social e se entende a política como a busca do bem comum, parece que há um caminho que liga esses três campos sem grandes problemas.

Esse tipo de confusão pode trazer sérios problemas práticos. Um deles se dá a partir da noção do “bem comum”. Como a discussão sobre o “bem” se dá no campo da ética, as igrejas cristãs costumam associar o debate e a luta pelo “bem comum” com a moral. No caso específico da teologia católica clássica, no campo da moral social. Nos seminários e nas faculdades de teologia, a questão dos problemas sociais, da política e a busca do bem comum é discutida nas aulas da moral social ou nas de doutrina social da Igreja. Isso pode gerar dois tipos de problemas. Primeiro é a desvalorização da questão social, pois não faria parte da “teologia sistemática” que discute as questões fundamentais da fé. O compromisso e as lutas em favor das vítimas e dos pobres seriam no máximo uma aplicação da fé, mas não uma parte essencial da identidade de ser cristão e da reflexão teológica.

O segundo é a tendência de “moralização” da discussão e ação política. Na medida em que não se percebe as especificidades do campo político (no sentido estrito relacionado ao Estado), não se discute as questões ligadas às instituições e à estrutura do Estado. Uma boa parte do debate se dá em torno da “honestidade”, da “santidade”, dos candidatos e das acusações de corrupção. (Isto sem falar em quão católico ou cristão é o candidato e o quanto vai defender os interesses ou as doutrinas morais da Igreja. O que é um grande equívoco e uma tentativa de voltar ao tempo da cristandade.) É claro que essas questões de honestidade e competência são também importantes, mas o que quero chamar atenção é que não se constrói uma sociedade mais justa e uma nova ordem político-econômico-social reduzindo o debate às questões morais ou a apelos morais. Se os apelos morais e a boa vontade fossem suficientes para criar um mundo mais justo, um mundo já teria sido “convertido” há séculos atrás. É preciso recriar o Estado e o sistema econômico.

Um efeito colateral destes problemas pode ser visto na ausência de uma séria reflexão teológica sobre o Estado na teologia latinoamericana. (A TL produziu uma consistente crítica teológica ao mercado/economia; e a filosofia da libertação, especialmente Enrique Dussel, tem produzido uma filosofia política da libertação).

Eu penso que devemos aproveitar esta época de eleição para rediscutirmos a questão da relação entre a fé e a política. Precisamos aprender com os erros do passado e com as novas reflexões teóricas e práticas que estão surgindo no presente. (A continuar…)

Jung Mo Sung é Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. Autor, com Hugo Assmann, de “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus.
Fonte: Adital

Sonho de sociedade sem Estado e a Teologia ~ Jung Mo Sung

No artigo anterior, “Fé e política: de novo?”, eu disse que por diversos motivos a teologia da libertação latinoamericana não elaborou uma teologia política, uma teologia do Estado. A grande maioria dos livros e textos menores sobre a fé e política ou de teologia política tratou da inserção dos cristãos nas lutas sociais ou de como a fé cristã nos impulsiona à luta contra o sistema capitalista. Muito pouco sobre a criação de um novo tipo de Estado, do papel do Estado ou da democracia na “nova sociedade”.

É claro que nas lutas sociais estava também incluída a inserção nos partidos de esquerda e nas eleições. Porém, não havia muita clareza das diferenças dos funcionamentos e das lógicas entre o campo das comunidades eclesiais, das lutas dos movimentos sociais e da política. Isso já aparecia desde o início da década de 1980, na dificuldade de diálogo e de relacionamento entre os cristãos engajados na militância política e as suas comunidades eclesiais de origem. E muitas vezes os próprios militantes acabavam deixando a política (no sentido estrito) porque se desiludiam com as lutas internas no partido e com a própria dinâmica do mundo político. No fundo esperavam encontrar na política um espaço de construção do “bem comum”, mas só viam “a luta pelo poder”. Essa é uma das razões que levam os cristãos comprometidos com o Reino de Deus e lutam por uma sociedade mais humana e justa a se encaminharem mais para as lutas sociais e se afastarem da política.

O problema é que sem a ação do Estado (seja pela criação de novas leis ou de políticas econômicas e sociais) as reivindicações dos movimentos sociais não se tornam direitos garantidos para toda a sociedade, até mesmo para setores que, de tão fracos, não conseguem se articular em movimentos e nem se vêem como sujeitos portadores de direitos. Além disso, a luta contra o capitalismo neoliberal globalizado pressupõe ações do Estado para limitar e regular o mercado.Não podemos nos esquecer que a grande consigna do neoliberalismo é a redução do Estado ao mínimo, sem não falar nos radicais que exigem o fim do Estado, para que o mercado e a sociedade funcionem “livremente”. E para que o mercado funcionasse “livremente”, caberia ao Estado somente a função de garantir os contratos e a segurança, isto é, somente a função de gerenciamento; deixando para trás todas as discussões sobre a democracia e as formas institucionais de “negociação” dos interesses conflitantes no interior da sociedade.

A política como a construção do bem comum é uma visão boa e ampla da política, mas esta não é suficiente para criticar radicalmente, pela raiz, a proposta neoliberal. Pois também concebe o Estado como um simples gerenciador da economia e da sociedade. Ele não teria funções e lógicas específicas que mereceriam reflexões e ações específicas. Essa é, na minha opinião, uma das razões pela qual a teologia latinoamericana não produziu uma teologia do Estado. Nós temos muita teologia sobre a Igreja, mas quase nada sobre o Estado. Parece que depois da “derrubada” do capitalismo não haveria necessidade de se criar um novo tipo de Estado e um novo tipo de democracia, ou mesmo que no processo da luta não haveria necessidade de ir transformando o Estado. Bastaria um líder justo e honesto para administrar a nova sociedade. No fundo é a reprodução do mito do “rei justo”, “rei messias”, para os dias de hoje e da ilusão de que a utopia de uma nova sociedade sem conflitos entre interesses, porque uma sociedade sem nenhum tipo de escassez e sem pessoas com visões diferentes e conflitantes sobre o que é o melhor para a sociedade, sem pessoas que desejam o que é do próximo, (ver o décimo mandamento de Deus), é empiricamente possível.

É interessante notar que encontramos também no marxismo essa visão negativa do Estado. Nos países socialistas, a política também foi reduzida a mera administração enquanto se destruiria o próprio Estado no caminharia para uma sociedade sem Estado. Por isso, neles não havia ou não há democracia de pluripartidarismo. Pois quando se pensa que não há conflito de visões e de interesses, basta um só partido para administrar o país.

Parece que muitos dos neoliberais, marxistas e cristãos da linha da libertação coincidem na sua visão negativa do Estado. Precisamos colocar urgentemente na pauta da discussão teológica e dos debates pastorais a questão da democracia (muito além da democracia burguesa) e do Estado, isto é, uma Teologia Política na perspectiva da libertação.

Jung Mo Sung é Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. Autor, com Hugo Assmann, de “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus.
Fonte: Adital