O que causou a crise de pedofilia na Igreja?

[IHU, 3 jun 11] Kathleen McChesney, que atuou de 2002 a 2005 como a primeira diretora-executiva do recém-criado Escritório para a Proteção da Criança e da Juventude da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, analisa aqui as principais conclusões do relatório do John Jay College sobre o abuso sexual por parte do clero. O artigo foi publicado na revista dos jesuítas dos EUA, America, 06-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto:

O tão esperado relatório As causas e o contexto do abuso sexual de menores por padres católicos nos Estados Unidos, 1950-2010 oferece respostas bem pesquisadas às perguntas-chave sobre a crise dos abusos. O John Jay College de Justiça Criminal passou quase cinco anos realizando esse estudo inédito, que foi encomendado pela Conferência dos Bispos dos EUA a um custo de 1,8 milhões de dólares.

O relatório não identifica uma causa específica definitiva para os abusos – não há nenhuma “prova cabal” para a vitimização dos milhares de meninos e meninas pelo clero católico durante as últimas seis décadas. Houve, ao contrário, uma confluência de fatores organizacionais, psicológicos e situacionais que “contribuíram para a vulnerabilidade dos padres” durante esse período, que levou a que 4% a 6% deles cometessem atos de abusos. Por que os outros 94% a 96% dos padres, sujeitos às mesmas vulnerabilidades, não ofenderam os menores não está claro e pode estar além dos limites da pesquisa psicológica e social. Fatores não são desculpas, no entanto, e a excessiva dependência a influências externas pode levar à complacência na prevenção dos abusos.

Aqueles que defenderam uma teoria de estimação ao porquê os padres causaram dano às crianças podem discordar das conclusões do relatório, e os céticos podem questionar os dados originais que as dioceses ofereceram. No entanto, essa visão abrangente e imparcial ao problema mais grave hoje da Igreja Católica responde sete questões-chave e ajudará seus membros a entender melhor o que ocorreu e por quê.

1. Todos os padres abusivos são pedófilos?

Menos de 5% dos padres com alegações de abuso exibiram comportamentos coerentes com a pedofilia. Isso significa que esse pequeno segmento de abusadores tinha uma atração sexual anormal e primária por crianças pré-púberes. Isso não significa que os outros 95% dos padres abusadores tinham uma atração normal por adolescentes, mas apenas que o estereótipo do “agressor como pedófilo” não é consistente com o tipo de casos que ocorreram entre 1950 e 2010. Independentemente da distinção dos pesquisadores entre pedófilos e efebófilos (isto é, entre aqueles que se sentem atraídos por crianças púberes e por crianças pós-púberes), os atos sexuais impostos sobre as crianças menores de idade foram criminosos e não normativos por qualquer padrão social ou cultural.

2. É possível prever quais homens podem abusar de menores?

O relatório afirma que é impossível prever que homens podem abusar de menores. Não há traços de personalidade individuais que diferenciam os clérigos abusadores dos não abusadores e não há nenhuma característica psicológica identificável que seja atribuída aos abusadores. Embora os padres sejam um grupo heterogêneo, existem certos fatores (como o fato de ter sido abusado quando criança) e eventos desencadeantes (tais como um alto consumo de álcool) que aumentam o risco de um homem a causar dano. Além disso, a maioria dos abusadores parecem ter certas “vulnerabilidades”, exemplificadas, entre outras coisas, pela sua “congruência emocional com adolescentes ou dificuldade na inter-relação com adultos”. A vulnerabilidade também pode ser o resultado do estresse em momentos de transição, por exemplo, quando se mudam do seminário para a vida paroquial, quando são transferidos a uma nova paróquia ou se tornar párocos. O estudo indica que essa constatação é igualmente aplicável aos padres formados nos Estados Unidos e em seminários estrangeiros. Apesar dessa comparação, dado o número crescente de seminaristas e de clérigos que se transferem entre dioceses e comunidades religiosas, pesquisas adicionais sobre a seleção desses candidatos seriam úteis.

3. O celibato foi a causa da crise dos abusos sexuais?

Os pesquisadores descontam o celibato como uma causa para o abuso por várias razões. A constância do celibato obrigatório desde o século XI poderia ter resultado em um número maior de casos perpetrados por um número maior – se não por todos – do clero ao longo do tempo. Não há nenhuma evidência para sugerir que todo padre católico ao longo dos tempos abusou sexualmente de um menor. Ao contrário, a maioria dos padres nunca ofendeu dessa maneira. Além disso, o abuso sexual de menores por padres nos Estados Unidos “aumentou constantemente desde meados dos anos 1960 até o final dos anos 1970, depois diminuiu nos anos 1980 e continuou baixo”. As regras imutáveis relacionadas ao celibato não contariam para esse aumento e para o declínio subsequente. Estava além do escopo desse estudo determinar o número total de clérigos que abusaram sexualmente de adultos ou que tiveram atividade sexual consensual com adultos, mas o desafio de viver uma vida celibatária e os déficits de intimidade podem levar os homens a agir de formas inapropriadas.

4. A homossexualidade foi a causa da crise dos abusos sexuais?

Apesar do fato de que 81% das vítimas de abuso pelo clero nos Estados Unidos eram do sexo masculino, o relatório afirma que a homossexualidade não foi a causa da crise dos abusos sexuais. Os pesquisadores do John Jay College e outros pesquisadores do assunto não encontraram nenhum dado que indique que a orientação homossexual é uma causa ou fator de risco para o abuso de crianças. Os clérigos que exibiram comportamento homossexual não eram significativamente mais propensos a abusar de menores do que aqueles que não o exibiram. A identidade sexual é diferente, é claro, do comportamento sexual, e o estudo não identificou a orientação sexual de todos os infratores. O relatório sugere que uma razão pela qual a maioria das vítimas eram do sexo masculino pode ser que os meninos eram mais acessíveis aos predadores do que as meninas. Os dados mostram que o percentual de meninas que foram vítimas aumentou depois que as meninas foram autorizadas a se tornar coroinhas.

Apesar de não ser mencionado no relatório, o fato de que os agressores parecem ter mais dificuldade de se relacionar com adultos do que com jovens pode explicar alguns dos abusos como “atuação sexual” e “experimentação” com adolescentes a quem os abusadores percebiam indevidamente como os seus parceiros sexuais. Os pesquisadores, no entanto, também indicaram corretamente que “não é possível nem desejável implementar amplas restrições sobre as relações educacionais e de aconselhamento entre menores e padres, dado que a maioria dos padres não abusou e provavelmente não o farão”.

5. Que papel teve a formação na incidência dos abusos sexuais de menores?

A formação, isto é, a forma como os seminaristas são treinados para se tornarem padres, parece ter desempenhado um papel significativo na probabilidade de um homem se tornar um abusador. A maioria dos infratores durante o período de 60 anos do estudo foram ordenados antes da década de 1970; 44% dos abusadores entrou no sacerdócio antes de 1960. Várias gerações de padres abusadores não tiveram uma preparação cuidadosa para a vida celibatária, como demonstrado pelo fato de que 70% deles se envolveram em atividades sexuais com adultos assim como crianças.

Além disso, esses abusadores não conseguiram reconhecer o mal que fizeram às suas vítimas. Quando a maioria desses infratores estava no seminário, o treinamento se focava em disciplinas acadêmicas, teologia e espiritualidade, com pouca atenção ao crescimento dos seminaristas como adultos maduros. Nos últimos anos, os programas de formação têm enfatizado as relações e as amizades, o autoconhecimento, a integridade e a castidade celibatária. Conforme os seminários intensificavam gradualmente o foco da formação sobre o aspecto “humano” do desenvolvimento, o número de incidentes de abuso começou a diminuir.

6. Houve uma falha organizacional ou uma falha de liderança que contribuiu para a crise?

O relatório afirma claramente: “O fracasso de alguns líderes diocesanos de assumir a responsabilidade pelos danos causados pelo abuso sacerdotal foi clamoroso em alguns casos”. Casos de bispos e de outras autoridades da Igreja que permitiram que conhecidos infratores assumissem novamente posições em que poderiam continuar tendo contato sem supervisão com crianças são bem conhecidos. O estudo observa com justiça que alguns bispos foram “inovadores” ao lidar com a questão do abuso bem antes de 2002, e alguns, os “retardatários”, não. Embora não citado no estudo, o recente relatório do Grande Júri e as acusações criminais contra uma autoridade da Igreja da arquidiocese da Filadélfia podem refletir uma crescente consciência por parte das autoridades civis, assim como ao grave impacto de más decisões referentes aos subordinados.

7. As condições sociais contribuíram ou influenciaram na incidência dos abusos sexuais de menores?

O estudo constatou que o aumento dos incidentes de abuso durante a década de 1960 e 1970 foi consistente com “o aumento de outros tipos de comportamentos ‘desviantes'” como o uso de drogas, a criminalidade e as mudanças no comportamento social, tais como o aumento da relação sexual antes do casamento e do divórcio. Essa constatação pode ser perigosamente mal interpretada por alguns como uma “causa” dos abusos. Enquanto as atividades sexuais de membros do clero com a permissão de adultos durante esse tempo pode refletir uma sociedade sexualmente liberada, em nenhum momento o abuso sexual de menores foi legal, moral ou justificado. Como seguidores adultos da fé católica, esses infratores sabiam ou deveriam saber que seus comportamentos violavam e feriam os jovens.

As recomendações do relatório

Os pesquisadores observam que o “pico da crise já passou” nos Estados Unidos, mas também ressaltam que os abusos sexuais de menores é um problema social de longo prazo, que provavelmente vai persistir, particularmente nas organizações que educam e acompanham os adolescentes. Com isso, a Igreja terá que lidar com as acusações de abuso por muitas décadas. As recomendações do relatório reforçam o valor das ações empreendidas pelos bispos e pelos superiores religiosos para prevenir futuros abusos – ações que podem e devem ser replicadas em outros países e por outras organizações.

As políticas de prevenção sugeridas se focam em três áreas: educação, modelos de prevenção situacional, e supervisão e responsabilização. Já se viu que a ênfase na “formação humana” nos seminários foi eficaz para a redução do número de abusadores, mas a educação continuada dos sacerdotes tem faltado. O relatório exorta os bispos a fornecerem os recursos necessários para uma aprendizagem por toda a vida para os sacerdotes e para delinear claramente padrões de comportamento para manter uma vida celibatária.

O estudo também adverte que os programas de prevenção devem ser adaptáveis às mudanças em uma sociedade em que novas e imprevisíveis oportunidades de abuso possam surgir. Os programas para um ambiente seguro em curso em todas as dioceses e em muitas comunidades religiosas já provaram ser bem sucedidas na elevação da consciência do que constitui um abuso e de como evitá-lo. As políticas de tolerância zero, combinadas com avaliações periódicas do desempenho dos padres, também são fundamentais para prevenir as violações de fronteira e os comportamentos prejudiciais.

Os pesquisadores urgem os líderes da Igreja a se concentrarem no bem-estar de seus padres e a oferecer saídas alternativas para que possam formar laços estreitos com os outros. Isso inclui a permissão para que o clero desenvolva amizades sociais com pessoas apropriadas à sua idade. Os bispos e os superiores também podem reduzir o estresse sobre os padres, oferecendo-lhes tempo para que participem em grupos de apoio e aumentem seu contato pessoal com os outros.

Por último, os pesquisadores enfatizam uma necessidade para que os bispos e outros líderes da Igreja sejam transparentes e responsáveis na denúncia e no tratamento dos abusos. Os católicos e todos os que observam a Igreja precisam ter uma melhor compreensão do que ocorreu e está ocorrendo com relação às alegações de abusos. Inspeções de conformidade e relatórios anuais ao público são essenciais para isso.

O estudo das causas e do contexto proporciona conhecimentos novos e vitais sobre a crise dos abusos sexuais, os horríveis atos que ocorreram e o contexto em que aconteceram. Ele não elimina o mal desses atos, nem tira a dor das vítimas ou recupera a sua inocência. Isso cabe a um verdadeiro pastor.

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