Crônica de uma tempestade ~ por José Roberto Prado

Havia sido um longo dia. Acalmar e organizar a multidão, ouvir os apelos das pessoas que buscavam por cura, libertação e conselho não foi fácil. Eram mais de cinco mil, de várias localidades. O Mestre, como sempre, tranqüilo. Perguntávamos uns aos outros de onde ele tirava tanta paciência para tratar com gente tão sofrida, tão complicada. Nada parecia lhe incomodar! Nem o calor, nem os gritos das crianças, o murmúrio impaciente dos doentes. Atendia a todos. Um a um!

A tarde chegou e com ela a fome. Não havia cidade por perto e o povo também não levou lanche. O que será que pensaram? Somente um garotinho fora prevenido. Parece que era um gordinho… (Desses que sempre tem um lanchinho escondido para as emergências…). Mas como alimentar a multidão? Melhor despedi-la, pensamos nós. O Mestre, pra variar, nos colocou numa sinuca: Alimentem-lhes!

Nós nunca sabíamos como ele iria agir. Imprevisível! Às vezes ficávamos tensos, outras vezes, envergonhados. Suas palavras, o jeito que ele nos olhava, seu amor e autoridade nos constrangiam. Iríamos com ele pra qualquer lugar. Enfrentaríamos tudo para obedecê-lo. Pelo menos agente pensava assim…

Foi um momento mágico quando ele nos mandou organizar a multidão em grupos e, com aqueles pães e peixinhos, agradeceu ao Pai e começou a reparti-los. Por mais que ele os partisse, não se acabavam…  Todos receberam sua porção, comeram e se fartaram. Havia um conversar reverente, feliz. Parecia que estávamos num banquete. Havia uma sensação tranqüila de que, ao lado dele, a vida se resolveria. ‘Ele devia ser nosso rei’, pensávamos todos, baixinho… Dava quase pra ouvir…

Depois que todos comeram passamos recolhendo o que sobrou. Ainda me recordo da alegria que a gente sentiu enchendo aqueles cestos. – Como pode…? Ah, esse Mestre… Seu senso de humor nos contagiava. O sol estava se pondo no horizonte e a gente ainda ria com os cestos. Como estavam pesados…

Foi então que o Mestre nos mandou voltar para casa, de barco. Ele despediria a multidão e se encontraria conosco depois. Como? Não disse. Iria orar; sozinho. Não queríamos ir, mas ele insistiu. Estava armando tempestade. Agente conhecia aquele céu. Sabia quando as nuvens apontavam tempestade. Mas o Mestre mandou… Nós fomos.

Já era noite quando o vento nos alcançou. Foi de repente como agente previra, só que mais forte. As ondas rapidamente ficaram muito mais altas do que as tempestades normais. Nosso barco apanhava das ondas, rangia – coitado – as madeiras torcidas pareciam chorar de desespero. Entre nós, um silêncio triste, cansado. Somente as palavras de ordem de Pedro que sabia o que fazer nessas horas. Mas até mesmo ele estava calado. Tiago, André e eu fazíamos de tudo pra equilibrar o barco. Os outros tentavam retirar a água. Trabalho vão.

Estávamos sendo vencidos pela tempestade.

Era alta madrugada, já se passara mais de oito horas desde que começamos a lutar com as águas. Longas horas. Agora o barco faz água e os músculos exaustos não mais respondem. Se pelo menos ele estivesse ali… Se adiantasse gritar teríamos gritado, em plenos pulmões…  Mas não adiantava.

O que estaria fazendo o Mestre enquanto enfrentávamos o vento e as ondas? Que ideia mandar-nos atravessar as águas naquelas condições. Ficamos confusos. Começamos a discutir. Brigamos.

Não havia mais nada que pudéssemos fazer. Desistimos. Perdemos a esperança de ver novamente a luz do dia.

Quando pensamos que não poderia ficar pior, do meio das ondas, vindo não sabemos de onde, quase passando direto pelo barco, uma assombração! Nossos corações cansados se aceleraram a ponto de quase sair pela boca. Pavor. Pânico. Naquele momento nós gritamos, muito…

Desesperamos da vida.

Parece que todos os demônios do inferno vieram em nossa direção!

Mas… espera aí. O que é isso? É Jesus…? “Calados!”, esbraveja Pedro: És tu, Senhor? Grita mais alto, como que querendo assustar a assombração… “Senhor, és tu”?

“Coragem. Sou eu! Não tenham medo!”.

Sim, é o Mestre. Identificamos sua voz. Ele andava sobre as ondas. As mesmas que estavam a ponto de nos engolfar. Sob os seus pés… Nosso grande inimigo sob seus pés… Ele parecia dançar com as ondas e o vento.

Jesus entra no barco sem dizer palavra. Senta.

Sem mais nem menos, do jeito que veio, o vento cessa, as ondas se acalmam, o mar descansa.

Jesus está no barco. Próximo. Calado. Sereno.

Por que duvidamos?

Amanhece. Chegamos à terra firme. Estamos em casa.

Aquelas palavras, porém, que ouvi no meio da tempestade, não saem da minha mente. Parece que ficaram gravadas em meu coração:

– Coragem. Sou eu. Não tenham medo…

[Baseado no relato do Evangelho de Marcos 6.45-52]

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