Angola: uma escola construída sobre o infortúnio

Nem a temperatura amena do inverno angolano – muito parecida com a de algumas cidades do litoral nordestino brasileiro na mesma estação -, nem o ar condicionado do carro ajudam a minimizar o desconforto que sinto ao adentrar o Mussende, bairro no município de Viana, nos arredores de Luanda, capital do país. É um mal-estar embebido de curiosidade, misturado à poeira do chão de terra e às imagens de crianças que brincam em meio ao lixo e a alguns animais.

Estou em uma comunidade de refugiados de guerra, gente que em 1981 abandonou a província Kwanza Sul para preservar a vida do conflito civil que começou em 1975, logo depois da independência da nação, e só terminou no início do século 21. As famílias, depois de ficarem por cerca de 11 anos nas províncias de Malange e Kwanza Norte, foram instaladas em Viana em 1993 pelo Ministério de Reinserção Social. Em 2002, mesmo estimulados a voltar para a terra natal, esses angolanos resolveram ficar por lá, muitos mesmo sem ter emprego.

À medida que adentro o bairro, o desconforto dá lugar à tristeza. As residências são precárias, muitas feitas de adobe, um tijolo feito de argila. As favelas brasileiras têm muito mais infraestrutura que os musseques angolanos, como são chamadas essas moradias por lá. Fornecimento de água, tratamento de esgoto, recolhimento de lixo e energia elétrica não existem. Sem isso, fica difícil conceber como alguém pode viver minimamente bem. Imagine, então, depois de uma guerra que, além de mortos e feridos, resultou em desemprego e uma explosão demográfica na capital e seus arredores.

Sigo em frente e a paisagem parece sempre a mesma, com crianças por todos os lados, brincando em meio ao lixo e a alguns animais. Será que elas ficam assim, perdidas, o dia todo?

Fico sabendo que no fim do bairro, de onde já me aproximo, há uma escola. Não sei se respiro aliviada ou se aciono um mecanismo de defesa para não me chocar com a cena de uma casinha simples, superlotada e abafada.

Para minha surpresa, o que avisto destoa e muito de todo o resto: uma edificação térrea com portas e janelas, pintada com esmero. É a Escola Número 9036, também chamada de Complexo Educacional do Mussende, que desde 2009 dá lugar à antiga e precária instituição, que só tinha 3 salas sem carteiras e algumas sem telhado também. Hoje são 6 ambientes para aulas, sala para professores, quadra esportiva e biblioteca.

“Quando decidimos trabalhar como voluntárias em parceria com a Odebrecht Angola para ajudar os moradores, uma das prioridades foi a Educação”, diz Monique Teti, integrante do Kambas do Bem, grupo de esposas de funcionários. A escola, construída com recursos arrecadados por elas e por outras empresas e com apoio da administração do município, foi entregue no segundo semestre de 2009. Hoje, lá estudam 660 alunos, entre crianças, jovens e adultos, divididos em três períodos, até a 5ª classe, o equivalente ao 6º ano no Brasil, e Educação de Jovens e Adultos. São 12 professores, todos muito empenhados, como André Cassengue, que guarda na memória a cena de algumas crianças que ele nunca mais tinha visto voltando à escola depois que o prédio ganhou nova estrutura.

Na biblioteca, estantes repletas de livros e revistas e mesas para leitura. O funcionamento está em fase de implementação. Todo o material será catalogado e os próprios estudantes vão cuidar do acervo no contraturno. Assim, toda comunidade poderá usufruir do espaço.

Entro em uma sala. Trata-se de uma turma da 5ª classe, com quase 50 alunos entre 10 e 13 anos. Os estudantes usam aventais impecavelmente brancos, estão sentados em mesas individuais e atentos à aula sobre o conceito de espaço tridimensional. Conheço Cecília, menina que diz querer ser advogada. Enfermeiro é a opção de Julio. Jerônimo se revela um aspirante a jornalista. Mas quando questiono por que estão na escola, em uníssono o grupo responde entusiasmado: “Para ajudar nosso país”.

É fim de tarde e o sol avermelhado, tipicamente angolano, está se pondo. As aulas terminaram e os alunos já voltaram às suas casas. Enquanto sigo de volta à Luanda, deixando a escola para trás, novamente sou envolvida pela poeira de um país que ainda precisa de muitas escolas como a do Mussende.

Fonte: Educar para Crescer, 15 out 2010 ~ Reportagem de Beatriz Vichessi, de Viana, Angola

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