Szymborska ~ José Miguel Wisnik

Não é o tema que faz a poesia, pois todo assunto pode resvalar para a bobagem, o sentimentalismo e o clichê

[OGlobo, 11 fev 12] Faço parte do clube dos amantes da poesia de Wislawa Szymborska. Uma senhora que até a semana passada vivia na cidade da Cracóvia. Não é fácil falar da poesia contemporânea, saber onde ela está, reconhecer o poeta em sua toca. De certo modo a toca é o lugar, escolhido e compulsório, de toda uma linha de poetas contemporâneos. A mercantilização das palavras, a sua apropriação publicitária, a identificação de tudo quanto existe pela sua senha utilitária, a mentalidade classificadora e redutora, a espetacularização da vida, a faccionalização dos discursos, são todos itens conhecidos, de certo modo batidos, mas verídicos, do mundo do qual a poesia tem que escapar, sabendo que isso é, no limite, impossível. Drummond, por exemplo, acusou a vinda dessa onda avassaladora, a partir dos anos 1950. Além disso, a poesia autêntica está exposta necessariamente ao confronto silencioso e difícil com a pulsão de morte que o mundo contemporâneo manifesta por todos os poros e ao mesmo tempo esconde como nunca.

Os amantes de Szymborska, que puderam conhecê-la melhor pela recente coletânea lançada pela Companhia das Letras, sentíamos o prazer secreto de sermos contemporâneos de uma poeta viva, experiência que se tornou rara hoje, independentemente do gênero masculino ou feminino, em boa parte pelos motivos apontados. E que durou pouco, enquanto tal, porque a edição do volume brasileiro dessa polaca que recebeu o Nobel em 1996 acabou acontecendo muito perto da sua morte, aos 88 anos.

Não é fácil explicar, para quem não a leu, porque a sua voz poética é tão especial, tão singular  e aparentemente tão comum. Szymborska só fala de coisas concretas e que estão ao alcance do horizonte de qualquer pessoa. É comum, embora nada obrigatório, que a poesia evite os substantivos abstratos, como ela o faz sistematicamente, e menos comum que pareça toda literal, como a dela, sem lançar mão da linguagem figurada e de imagens nebulosas. Mas em muitos poemas Szymborska parece encontrar uma fórmula engenhosa e simples para dizer coisas surpreendentes, num arco que vai do trivial ao cósmico.

O sentimento da vida enquanto teatro em tempo real (“A vida na hora”), ou o momento em que o teatro vira vida (“Impressões de teatro”), uma lista de frases comuns em velórios e enterros ( “ Funeral ” ) , uma relação das coisas que compõem o quarto de um suicida (“O quarto do suicida”), os atos pelos quais uma guerra terminada vai entrando na normalidade (“Fim e começo”), uma visita ao museu de história natural (“Esqueleto de dinossauro”), a lista das razões possíveis pelas quais a mulher de Lot olhou para trás, desencadeando a hecatombe de Sodoma e Gomorra, no episódio bíblico (“A mulher de Lot”).

Não é o tema que faz a poesia, pois todo assunto pode resvalar para a bobagem, o sentimentalismo e o clichê. O que faz a poesia é antes o rigor interno que não admite concessões aos discursos prontos — prontos para se apropriar de tudo o que é dito. Um poeta pode ser reconhecido por um único verso, pois uma palavra fora, uma palavra em falso, uma palavra falsa, põem abaixo o edifício todo. O poeta, nesse sentido, opera com todo o espectro das menores refrações semânticas e sonoras das palavras, fazendo com elas cálculos mentais e emocionais de alta complexidade. Francisco Bosco comparou aqui esse exercício da poesia com o da matemática avançada, e eu acho a comparação procedente, se nos livrarmos das dicotomias banais entre razão e emoção.

É só assim que um poema soa límpido, como os de Wislawa Szymborska. Fica parecendo fácil, mas é dificílimo. Sem conhecermos o original, as traduções de Regina Przybycien soam certeiras porque são capazes de produzir e sustentar esse efeito. Szymborska só fala da experiência que está ao alcance da pessoa, mas a sua escala inclui a fenomenologia das nuvens, a história da espécie flagrada nos seus vestígios em nós, a opacidade da pedra e o desejo vão de devassá-la, os bichos, as constelações acesas e a estrela longínqua. A história do século está fortemente presente, mas de maneiras inusitadas: Hitler enquanto bebê, o terrorista voyeur, as metamorfoses da tortura perante as fragilidades milenares do corpo, que não mudam, as guerras vividas, revividas, esquecidas e o caráter inescapável da política em todos os nossos menores atos. Um dos poemas mais lindos, “A curta vida dos nossos antepassados”, deixa entrever por contraste a grande aceleração do tempo de que somos herdeiros.

A atitude é sóbria, temperada de humor ferino, e decantada pelas retinas que viram tudo, sem perder a perspectiva da pessoa comum. Conhece o lugar irrisório que foi dado à poesia no nosso mundo, e afirma-a em ato, com a potência, a sabida ilusão e o consolo, a alegria da escrita.

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