“O eurocentrismo morreu”, diz historiador Robert Darnton

Como estudioso da Revolução Francesa e da cultura da Europa, esse autor prolífico de 73 anos assiste aos desdobramentos da crise na União Europeia sobre a produção cultural do continente, na qual ele vê exaustão.

[Luciana Coelho, Folha SP, 28 mai 12] O historiador americano Robert Darnton está elétrico. Seu trabalho atual — dirigir a maior rede de bibliotecas universitárias do planeta, a de Harvard — passa por uma revolução diante da missão de criar uma megacoleção de livros e documentos on-line sediada nos EUA e aberta ao mundo.

“Aqui, temos 17 milhões de volumes e 350 línguas. É algo não somente para os estudantes e professores da universidade, mas algo que devemos ao país e como um depósito internacional de conhecimento”, afirma. “Por isso minha maior missão é abri-la e dividi-la com o mundo.”

No Oriente Médio, observa a Primavera Árabe, passar do “fervor utópico” à consolidação e à construção. “É menos dramático, mas é promissor.” Antes de embarcar para o Brasil para um congresso cultural nesta semana, Darnton conversou com a Folha por telefone sobre livros, crises e leis autorais. Leia a seguir.

A crise na Europa parece ter fermentado uma clara sensação de insatisfação política, que já derrubou governos, e, aparentemente, afeta a psique europeia. Como o sr. avalia o momento histórico no continente e quais seriam os paralelos?
Acho justo dizer que há uma crise de confiança na Europa. Claro, há uma base econômica, com o desemprego em alta e bancos quebrando ou com risco de quebrar. Mas a questão vai além: há dúvidas sobre o futuro da Europa em si. Há sinais de descontentamento nas pequenas comunidades — imagine a fragmentação espiritual no norte da Itália, no leste da Espanha ou mesmo nos Bálcãs — com a unidades políticas fundamentais, sejam nacionais ou europeias, questionadas. É uma balcanização fora dos Bálcãs.
As pessoas estão refletindo sobre a Europa e seu lugar no mundo, e, ao fazer isso, pensam em países como o Brasil, a Turquia, a China e as novas potências emergindo. Quando eu vou à Europa, noto uma sensação de exaustão, de estar ficando para trás na corrida. No norte da Europa, as coisas vão bem. Mas é claro que o ressentimento dos gregos em relação aos alemães e dos alemães em relação aos gregos mostra que algo está fora de sincronia. Portanto é justo dizer que os europeus estão questionando a Europa.

A percepção de importância europeia persiste, mas a auto-estima parece afetada. Faz sentido?
Eu concordo, é uma sensação de ter sido ultrapassado e não estar mais no ‘fast track’ da história. E não só na economia, quando eles veem a qualidade da literatura, do cinema, da música que vêm da América Latina, aparece essa exaustão, e a vitalidade desse outro lado do mundo os ofusca. Há lados positivos, há um centro de estudos brasileiros em Paris florescendo, por exemplo. Mas o eurocentrismo morreu. A noção de que a Europa dita o ritmo na vida cultural não é mais verdade. Não que a cultura europeia tenha se esgotado, mas hoje os americanos — tanto os norte-americanos quanto os latinos — são mais centrais para a cultura.

Ainda há literatura europeia florescendo.
Verdade, há coisas boas. Há essa frase do filósofo alemão do século 18, Hegel, ‘a coruja de Minerva abre suas asas após o anoitecer’, que quer dizer que a cultura floresce quando os países parecem estar em declínio. As pessoas que conheço lá, jornalistas, críticos literários, seguem produzindo. Mas quando vou ao México ou ao Brasil, sinto uma vitalidade que não sinto mais em Paris ou Londres — há Berlim, claro, que é uma cidade vibrante.

A exaustão, além da economia, vem de onde?
É difícil apontar, mas acho que um dos pontos de dificuldade é a educação superior. As universidades estão sofrendo na Europa inteira. As universidades italianas estão no caos, e os estudantes que obtêm doutorados na Europa partem para os EUA ou a América Latina porque lá não há lugar para eles, seja em física ou em filosofia. A Alemanha, que tinha um ótimo sistema, está tentando manter tudo em pé e manter seus centros de excelência, mas as universidades alemãs estão oferecendo seminários para turmas de cem pessoas, o que é inviável. As universidades francesas estão em má forma, sem o financiamento adequado, e na Inglaterra, que tem o melhor sistema, o financiamento afundou. Há um declínio na aprendizagem, e isso se reflete na sociedade. A Europa está sem recursos para manter esse maravilhoso sistema de universidades funcionando.

É o dilema do ovo e da galinha, o declínio na educação afetará a economia.
É um círculo vicioso, e há provas de que investimentos em educação melhoram a economia em vários aspectos, não só tecnológico, mas ao produzir uma força de trabalho que tenha domínio da linguagem, por exemplo. Quando eu vejo as pessoas na Europa cometerem erros de gramática, eu me preocupo. Pode soar pedante, besta, mas a deterioração da gramática é um sintoma da deterioração cultural.

Qual seria o papel cultural dos emergentes, quase sempre deixados em segundo plano nos altos círculos?
Há mais interesse nos EUA pela América Latina. Na Europa, sempre houve uma certa condescendência. Mas nos EUA eu diria que é mais ignorância do que outra coisa. Temos tanta coisa em comum com o Brasil que há uma abertura para a experiência latina nos EUA do que na Europa, embora a ignorância esteja lá ainda. Muitos amigos e alunos meus hoje falam espanhol, alguns falam português e há gente interessada em mandarim. Houve uma mudança no centro de gravidade cultural, e acho que haverá cada vez mais colaboração entre a América do Norte e a do Sul. Temos muito a aprender, e deveríamos começar tirando vantagem dessa nova habilidade linguística.
O português não se disseminou tanto nos EUA como o espanhol, mas há uma vitalidade cultural popular no Brasil que fascina os americanos. Eu acho que vamos ver aumentar o intercâmbio cultural entre o norte e o sul nas Américas e menos na Europa, embora eu fique impressionado com a sofisticação das pessoas em São Paulo que sempre sabem a última novidade da Rive Gauche. Vocês têm uma intelligentsia que não existe nos EUA, onde o prestígio de ser um intelectual é menor do que em outros lugares.

Em Harvard, onde o sr. está, isso não parece verdade.
Ah sim, os professores de Harvard se levam a sério demais, mas eu tento evitar… Mas acho que as universidades deveriam querer ter cada vez mais estrangeiros participando de sua vida.

Tem sido uma meta, mas não sei se é um desejo genuíno de atrair o melhor ou uma questão financeira.
É genuíno, as universidades prosperam com talento, e muitos desses talentos estão fora dos EUA. Por causa disso, o MIT [Massachusetts Institute of Technology] é um lugar mais vibrante do que Harvard, achou eu, embora estejamos trabalhando com eles em vários projetos, inclusive nas bibliotecas…

Qual o futuro das bibliotecas, com a digitalização?
O futuro é o acesso aberto. Abrir os tesouros intelectuais guardados nas nossas grandes bibliotecas de pesquisa, como a de Harvard, para o mundo. Eu recebi a incumbência de criar a Biblioteca Pública Digital da América, e há dois anos estamos trabalhando para criar um novo tipo de biblioteca. Vamos pegar coleções digitais de todas as grandes bibliotecas do país e usá-las como base de uma grande coleção de livros, manuscritos, filmes, gravações e canções que ficarão disponíveis de graça para todo mundo no mundo. Vamos estrear em abril do ano que vem. Será uma versão preliminar, mas vai crescer até um dia, eu acho, superar a Biblioteca do Congresso, a maior do mundo.

Quantos títulos estarão disponíveis em abril?
Não sei ainda, depende de quantas pessoas conseguirmos mobilizar. Hoje há cerca de 2 milhões de títulos de domínio público, que não estão mais vinculados a direitos autorais, e coleções especiais. A maioria das bibliotecas tem, além de livros raros, coleções específicas — aqui temos os escritos de Emily Dickson. Isso será digitalizado e disponibilizado on-line. Com os anos, a riqueza intelectual acumulada será enorme. E nós temos dinheiro para fazer. Tecnologicamente, o Google nos mostrou o caminho, e em termos de financiamento, não dependemos de dinheiro público, do Congresso. Estamos arrecadando com fundações privadas.

Quanto custa o projeto?
Ainda não temos o orçamento para o futuro ainda, mas preparar as bases da biblioteca nos custou US$ 5 milhões, com instalações modestas aqui, um secretariado e uma pequena equipe, além de seis forças-tarefa pelo país que trabalham nos diferentes aspectos do projeto, como a questão dos direitos autorais. Porque queremos repeitar os direitos autorais, mas queremos ter na biblioteca livros cobertos por direitos autorais mas com a edição esgotada. E isso envolve milhões de livros, o século 20 inteiro, fora o 21. O Google tentou tentou disponibilizar esses livros em uma biblioteca comercial online, mas os tribunais vetaram. Acho que a nossa tentativa vai prosperar, porque estamos comprometidos com o bem comum, não visamos lucro. A questão é como fazer.

O debate sobre direitos autorais hoje é um dos mais intrincados e difíceis…
Pois é, estou ansioso para saber como está no Brasil, porque espero que possamos cooperar. A ideia é de uma biblioteca internacional com base nos EUA, e já assinamos um acordo com a Europeana, que é a tentativa pan-europeia de fazer o mesmo. Mas você tem razão, a contenda da propriedade intelectual é enorme, e tem sido dominada pelo lobby de Hollywood, preocupado com filmes e música, não com a herança cultural do país. Temos de arrumar uma forma de disponibilizar essa riqueza intelectual. Temos professores de direito aqui e em outros lugares estudando formas legítimas de fazer isso. Um jeito é por meio dos processos de ‘fair use’ (uso justo) — esperamos ampliar a extensão dele.

Estudando a lei americana, é inevitável achar que ela precisa mudar.
Eu também acho. A primeira lei americana, de 1790, seguia o exemplo britânico, que era de 14 anos renováveis por mais 14. Hoje, a vida do autor mais 70 anos, é mais do que um século, um absurdo. A questão é como mudar isso com esse Congresso. O país está desiludido com a capacidade desse Congresso de fazer qualquer coisa. Então estamos tentando mudar nos tribunais. E não pode ser tijolo a tijolo, pois queremos milhões de livros na biblioteca. Precisamos de uma estratégia que abra caminho para a digitalização em massa na comunicação.

O sr. deu uma entrevista à minha colega da Folha Claudia Antunes, no ano passado, na qual mostrava otimismo com a Primavera Árabe. Como se sente mais de um ano depois?
Como um estudioso da Revolução Francesa, eu estava esperando sintomas de liberação em todas as frentes, e hoje estou procurando sintomas de reação, que é o que acontece em tempos revolucionários. O lugar mais excitante é o Egito. É claro que houve reações, é interessante ver como o aumento de criminalidade e a desordem foi explorado por alguns candidatos à Presidência.

Parece ser tudo sobre o que eles falam hoje.
Eles também falam do movimento islâmico, da Irmandade Muçulmana, que foi parte do movimento desde o início. O que parece estar menos forte é o radicalismo secular.
Acho que estamos agora em 1791 [da Revolução Francesa], e não em 1789, quando há um período de profunda preocupação com a ordem e a necessidade de se construir uma nova estrutura civil, com uma nova Constituição. Estou acompanhando o noticiários obre as eleições, atentamente, e há espaço para otimismo cauteloso. A Irmandade Muçulmana deve ganhar poder, o que é normal — afinal, é um país muçulmano. Há muito medo do Islã e incompreensão nos EUA. Mas eu sinto que o momento de fervor utópico passou e deu lugar ao momento de construção e consolidação. É menos dramático, mas é muito promissor. Só o fim da tortura, das prisões arbitrárias e, espero, da corrupção são um passo enorme adiante.

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