O anúncio do Reino de Deus e a ética: Ratzinger e Jon Sobrino, duas visões

[Por Moisés Sbardelotto, IHU Online, 21 nov 2010]

Para enfrentar problemas globais como a pobreza, a violência, o racismo e o sexismo, é necessário encontrar uma “abordagem básica para a moral”, ou seja, valores que “os seres humanos partilham em comum”. Mas, para isso, é preciso “rever o significado da lei natural para o mundo de hoje”.

Para a teóloga norte-americana Lisa Sowle Cahill, professora do Boston College, o desafio da ética é justamente “tentar formular diretrizes mais ou menos confiáveis e às vezes até absolutas, que definam instituições, práticas sociais e decisões individuais moralmente boas”. Mas reconhece: “Essa não é uma tarefa fácil. Na verdade, é uma tarefa que nunca acaba”. Por isso, hoje, “é essencial envolver a participação de vozes que foram frequentemente excluídas do processo decisório no passado, por exemplo, as mulheres, as minorias raciais e étnicas da sociedade e os leigos na Igreja”.

Especificamente com relação às mulheres, Lisa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, critica o patriarcado ainda existente na Igreja, disfarçado sob “uma ideologia de ‘complementaridade entre gêneros'”, que, segundo ela, “serve como uma justificação para confinar as mulheres a papéis domésticos”. Mas, afirma, há sinais importantes de esperança para as mulheres na Igreja e na teologia moral, que não se encontram nos escritos dos papas e de outros mestres oficiais: é o papel que as próprias mulheres estão desempenhando na teologia e na Igreja. “O Brasil é o lar de muitas importantes teólogas feministas”, afirma.

Lisa Sowle Cahill é teóloga e professora da cátedra J. Donald Monan, SJ, do Boston College, nos Estados Unidos, onde leciona teologia desde l976. É ex-presidente da Catholic Theological Society of America e da Society of Christian Ethics. Também é membro da American Academy of Arts and Sciences. Formada em teologia pela Santa Clara University, é mestra e doutora em teologia pela University of Chicago. Em 2008, participou do Comitê Consultivo Católico do então candidato a presidente Barack Obama. É autora, dentre outros, de Theological Bioethics: Participation, Justice and Change (Georgetown, 2005);  Sexuality and the U.S. Catholic Church: Crisis and Renewal, editado com John Garvey e T. Frank Kennedy (New York:  Herder and Herder, 2006); e Genetics, Theology, Ethics:  An Interdisciplinary Conversation (Crossroad, 2005).

Confira a entrevista.

Como podemos compreender o compromisso ético na realidade social, moderna e laica de hoje, caracterizada por aquilo que alguns – como o Vaticano – chamam de “relativismo”? Quais seriam seus fundamentos básicos?

Lisa Sowle Cahill – Ao falar sobre “relativismo”, acho que uma abordagem útil ainda é a “lei natural”, como sugerida por Tomás de Aquino. Temos que rever o significado da lei natural para o mundo de hoje, é claro. Por “lei natural”, não me refiro a um conjunto de conclusões ou de regras específicas de comportamento. Pelo contrário, refiro-me a uma abordagem básica para a moral, que busca compreender – a partir “do zero” ou indutivamente – quais valores os seres humanos partilham em comum. É necessário algum sentido de uma moral compartilhada e não relativa para enfrentar problemas globais como a pobreza, a violência, o racismo e o sexismo.

Aquino sugere três exemplos básicos de bens humanos compartilhados que são reconhecidos em todas as culturas:

  1. o desejo de preservar a própria vida e o respeito pela vida dos outros;
  2. o valor do sexo, de se ter filhos e de educar a próxima geração;
  3. a importância de viver cooperativamente em sociedade e, como diz Aquino, “buscar conhecer a verdade sobre Deus”.

Obviamente, a forma como esses três bens são institucionalizados em diferentes sociedades, e realizados concretamente, vai variar de lugar para lugar e de tempo para tempo. Assim, enquanto os bens básicos são não relativos, expressões éticas específicas podem ser relativas a circunstâncias e necessidades. Como disse o próprio Aquino, a ética lida com “matérias contingentes”, e, quanto mais lidamos com questões morais concretas e detalhadas, mais variedade haverá.

“A Igreja Católica ainda é marcada pelo patriarcado, disfarçada sob uma ideologia de ‘complementaridade entre gêneros'”

A tarefa da ética é tentar formular diretrizes mais ou menos confiáveis e às vezes até absolutas, que definam instituições, práticas sociais e decisões individuais moralmente boas. Essa não é uma tarefa fácil. Na verdade, é uma tarefa que nunca acaba.

O último ponto que eu gostaria de abordar é que, no mundo de hoje, é essencial envolver a participação de vozes que foram frequentemente excluídas do processo decisório no passado, por exemplo, as mulheres, as minorias raciais e étnicas da sociedade e os leigos na Igreja.

Cristo traz um “novo paradigma normativo”, como a senhora afirma, tanto para a teologia quanto para a ética. Nesse sentido, quais as contribuições específicas do cristianismo para o compromisso ético?

Lisa – O cristianismo não traz uma definição nova ou diferente dos bens humanos básicos como a vida, o sexo e a procriação, ou a cooperação sociopolítica. Mas traz uma visão diferente da inclusividade de acesso a esses bens. Eles não são apenas para as elites. Os poderosos não têm o direito exclusivo de usufruir dos bens humanos, ou de decidir quem pode tê-los, e em que condições.

Encontramos a principal mensagem moral do Evangelho no ministério de Jesus do reino de Deus, em sua “comunhão à mesa” inclusiva com os pecadores e os marginalizados, e em seu mandamento de amar a Deus e ao próximo, e até mesmo aos estranhos e inimigos.

Outra parte de sua mensagem e de seu exemplo é a Cruz. Devemos estar dispostos a nos sacrificar a fim de assegurar que o reino ou o reinado de Deus comece a se tornar uma realidade para aqueles que sofrem injustamente no nosso mundo.

“Um perigo da teologia de Ratzinger é que ela pode incentivar os cristãos a ter uma visão transcendental da espiritualidade cristã”

Finalmente, os cristãos também vivem a partir da ressurreição de Cristo. Devemos confiar que um mundo melhor é possível, mesmo que isso nunca será historicamente perfeito. A ressurreição de Cristo nos dá a confiança de que podemos trabalhar com os outros pela justiça social.

Especialmente na América Latina, a situação social e a opção pelos pobres trouxeram uma nova leitura para a vivência cristã. Em sua opinião, como isso afetou o debate sobre a ética cristã?

Lisa – Não apenas na América Latina, mas em todo o mundo, a “opção pelos pobres” tornou-se fundamental para a ética cristã. Vemos isso refletido, por exemplo, na Sollicitudo rei socialis, uma encíclica de João Paulo II, e na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2009, de Bento XVI, na luta contra a pobreza. A lição para a ética é que as questões do pecado social e estrutural e da justiça são as questões mais importantes e fundamentais para a ética cristã, e que a chamada “ética pessoal” deve estar sempre ligada ao contexto social e à responsabilidade social.

Qual a relação entre ética e teologia? Como ambas podem se complementar?

Lisa – A teologia cristã traz à ética a opção pelos pobres, assim como a necessidade da Cruz e a esperança na ressurreição. Mas a ética traz à teologia a prova prática da justiça. Será que os símbolos e doutrinas teológicos e a forma como são utilizados promovem o ministério de Jesus do Reino de Deus?

A senhora estabelece uma relação entre a teologia de Joseph Ratzinger e a de Jon Sobrino para analisar a ética do reino de Deus. Quais são suas principais semelhanças e diferenças?

Lisa – Ambos os autores escrevem sobre Jesus e o Reino de Deus e destacam que Jesus torna o Reino presente na história e nas nossas vidas. No entanto, enquanto Sobrino sublinha a realidade do reino e da ressurreição na vida dos pobres e exorta os cristãos privilegiados a “tirar os pobres da cruz”, Ratzinger sublinha o reino de Deus como uma relação transcendental e espiritual com Deus por meio de Cristo como a Palavra.

“A teologia cristã traz à ética a opção pelos pobres, assim como a necessidade da Cruz e a esperança na ressurreição. Mas a ética traz à teologia a prova prática da justiça”

Um perigo da teologia de Ratzinger é que ela pode incentivar os cristãos a ter uma visão transcendental da espiritualidade cristã e negligenciar as suas responsabilidades e possibilidades de fazer mudanças no mundo como o conhecemos, especialmente mudanças para curar a injustiça e aumentar o bem comum. Eu realmente penso que Sobrino é mais bem sucedido ao enfatizar a necessidade da graça de Deus para realizar a mudança social, do que Ratzinger ao enfatizar que, se amamos verdadeiramente a Deus, vamos dar passos concretos para ajudar o nosso próximo, incluindo mudanças estruturais.

Ao mesmo tempo, na verdade, Sobrino e Ratzinger estão se dirigindo a públicos e necessidades diferentes. Sobrino vê o sofrimento dos pobres no El Salvador e em todo o mundo. Ratzinger vê a alienação de muitos diante da religião na Europa “secular” e quer assegurar às pessoas que uma relação com Deus é realmente possível.

A senhora afirma que os cristãos “aprendem” a ética cristã especialmente por meio da Igreja, “apesar de suas fraquezas”. Como a senhora vê esse aprendizado ético?

Lisa – Idealmente, a Igreja é uma comunidade da ressurreição, onde Cristo está presente no Espírito Santo. Infeliz e escandalosamente, a Igreja Católica e as comunidades eclesiais específicas muitas vezes violam esse chamado e falham em revelar Cristo ou em nos ensinar como viver a partir da ressurreição. Muitos exemplos são óbvios, do antigo patriarcado, racismo e riqueza ostentatória, às recentes crises de abusos sexuais. No entanto, por meio do exemplo de Cristo, dos sacramentos, das organizações cristãs de justiça social e da educação católica, como as universidades jesuítas, nós continuamos realmente aprendendo o que significa ser cristão e como viver eticamente como cristãos.

A ética hoje, segundo a senhora, deve nos ajudar combater o “consumismo, a cobiça e o militarismo”, assim como o sexismo e a exploração das mulheres. Quais são os principais desafios que esses fenômenos apresentam para a fé cristã hoje?

O principal desafio é o desafio da esperança. Esses males sempre fizeram parte do mundo e nunca serão totalmente erradicados. Mas os cristãos devem lutar contra o cinismo e o desespero. Uma das principais fontes da nossa esperança é a graça que encontramos em solidariedade e em compromisso com e pelos outros – quando pelo menos tentamos viver no reino de Deus, por meio da vida de ressurreição, e descobrimos que podemos começar a mudar a nossa realidade.

Como a senhora analisa a relação entre a teologia das religiões e o debate ético? Que ética surge a partir do diálogo inter-religioso?

Os problemas globais que enfrentamos exigem um processo de responsabilização, análise e trabalho pela mudança global, intercultural e inter-religioso. As pessoas de todas as culturas podem reconhecer as necessidades e bens humanos básicos. O maior desafio é o desafio do acesso justo aos bens que todos valorizamos. Ninguém quer ser pobre ou viver no meio da guerra e da violência. No entanto, poucas pessoas estão dispostas a reconhecer que todas as pessoas têm um igual direito a usufruir das condições de uma vida boa e a se comprometer a remover os obstáculos. Todas as grandes religiões do mundo trazem uma mensagem de compaixão, e o cristianismo, o judaísmo e o islamismo partilham a mesma narrativa bíblica de um criador bom que fez todas as pessoas à imagem divina.

A senhora afirma que “a ética é a prática do Reino de Deus”, e este, por sua vez, é “muito concreto”. Que feições essa prática ética assume nas sociedades contemporâneas?

Aqui, eu gostaria apenas de enfatizar novamente que o Reino de Deus não é apenas um relacionamento pessoal e espiritual com Deus, uma esperança de vida após a morte ou uma vaga intenção de querer o bem às outras pessoas. Todos nós temos a responsabilidade de nos comprometer de alguma forma a fazer a diferença na vida daqueles que sofrem, e isso inclui a responsabilidade por estruturas sociais que podemos afetar por meio da participação política. E, em termos mais tradicionais, devemos nos esforçar para viver com honestidade, integridade e compaixão em nossas vidas e relacionamentos pessoais, incluindo o sexo, o casamento e a família, o trabalho e os negócios, os bairros e as comunidades, e o nosso impacto sobre o ambiente natural.

Como mulher, como a senhora vê o fazer teologia (e teologia moral) na Igreja hoje?

Por um lado, a Igreja Católica ainda é marcada pelo patriarcado, disfarçada sob uma ideologia de “complementaridade entre gêneros”, que serve como uma justificação para confinar as mulheres a papéis domésticos e esperando mais sacrifícios pessoais das mulheres do que dos homens. Um “padrão duplo” sexual ainda existe em todo o mundo, inclusive dentro da Igreja. Esses estereótipos de gênero são prejudiciais para os homens e os meninos, assim como para as mulheres e as meninas.

Alguns representantes da Igreja, assim chamados, condenam violentamente as mulheres que buscam acabar com a gravidez em circunstâncias desesperadoras, por exemplo, enquanto são muito mais compreensíveis ou matizados em seus pontos de vista sobre políticas econômicas e militares que matam muitos, ou a destruição do meio ambiente que também resulta em sofrimento humano e morte.

Ao mesmo tempo, é importante não esquecer o imenso progresso que foi feito pela Igreja Católica, ao longo das duas últimas gerações, com relação às mulheres. Em 1930, Pio XI ainda dizia às mulheres que fossem submissas à autoridade dos seus maridos e nem sequer lhes permitia controlar suas próprias questões financeiras. A infame encíclica de 1968 sobre o controle de natalidade (Humanae vitae) condenou o controle de natalidade artificial, que também era uma forma de controlar a fertilidade das mulheres e de assegurar que as mulheres não tivessem muita liberdade com relação às responsabilidades familiares. No entanto, essa mesma encíclica também apresentou os esposos como teoricamente iguais no sexo e no casamento, e partiu de uma definição da procriação como o principal objetivo do sexo a uma visão do sexo igualmente como amor e compromisso.

João Paulo II propôs uma teoria da complementaridade de gênero entre homens e mulheres que sugere que a maternidade é o papel mais importante das mulheres. No entanto, ele também defendeu o acesso das mulheres a todas as funções públicas e disse que as mulheres devem receber um salário igual para um trabalho igual, comparável ao dos homens. Talvez o que mais impressionante é a sua Carta às Mulheres, de 1995 (escrita para a Conferência da ONU sobre as mulheres de Pequim). Lá, ele elogia “o grande processo de libertação das mulheres”, condena a violência contra as mulheres (principalmente a violência sexual) e até pede desculpas pelo papel que representantes da Igreja tiveram na opressão das mulheres e na negação da sua dignidade. (Claro, precisamos dar um passo a mais e admitir que isso não tem a ver apenas com alguns representantes, mas sim com pontos de vista e políticas da Igreja Católica como um todo, que, ao longo dos séculos, tiveram efeitos negativos sobre as mulheres).

O sinal mais importante de esperança para as mulheres na igreja e na teologia moral, no entanto, não são os escritos dos Papas e de outros mestres oficiais, mas sim o papel que as próprias mulheres estão desempenhando na teologia e na Igreja. O Brasil é o lar de muitas importantes teólogas feministas. As mulheres não estão à espera de aprovação oficial. Elas estão fazendo ouvir as suas vozes na Igreja e na teologia, e já estão mudando o mundo para nós mesmos, para nossos filhos e alunos.

Nos EUA, estamos muito felizes por ter uma grande rede de universidades católicas, muitas delas jesuítas, em que a teologia criativa e crítico é estimulada e valorizada, e em que as mulheres e os homens trabalham em conjunto para mudar a disciplina da teologia moral (ética cristã), de modo que seja mais igual em gênero e mais sensível às preocupações de justiça global. Em nível internacional, eu tive a sorte de trabalhar com colegas maravilhosas, incluindo as brasileiras Maria Clara Bingemer e Ivone Gebara, na produção da revista Concilium.

2 ideias sobre “O anúncio do Reino de Deus e a ética: Ratzinger e Jon Sobrino, duas visões

  1. Glauco

    Sobrino e Ratzinger são antagonistas. Fora com sobrino e sua teologia da libertacao. Gebara nao é crista, é a favor do aborto (assassinato de inocentes)

  2. Maíra

    Se você gosta de Sobrino não pode apreciar Ratzinger. Gebara é freira abortista ou seja, é a favor do assassinato de inocentes. Bento XVI é o representante de Cristo na terra para os católicos, portanto se Sobrino é seu ídolo, deixe a igreja católica, Sobrino é o papa da Teologia da Libertacao, portanto, nao deve ser considerado católico. Fora com a Teologia da Libertacao, ex freis betto e boff et caterva. N

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