Nem padre nem leigo ~ José Arregui

[Adital, 14 mar 11] Eu ia dar a este artigo o título: “Eu sou leigo”. Agora, por causa de doutrinas e interpretações que nunca nos deveriam ter trazido até aqui, comecei o duplo processo de exclaustração (abandono da “Vida Religiosa”) e de secularização (abandono do sacerdócio), eu queria fazer um brinde ao meu novo estado e dizer “Estou honrado por ser leigo, pela graça de Deus. Fico feliz em ser um de vocês, a imensa maioria na Igreja”.

Mas tenho de me corrigir desde já. Leigo? Não, realmente não sou leigo nem quero sê-lo, pois este termo só tem sentido em contraposição a clérigo e sempre no sentido de menos importante, de falta de alguma coisa. Não sou leigo nem quero sê-lo, porque esse nome foi inventado pelos clérigos que – ninguém se admire – sempre foram os poderosos que impuseram a sua linguagem. Não quero ser leigo, que seria como dizer cristão raso e de segunda, cristão subordinado.

O Direito Canônico vigente dá uma estranha definição do termo: “leigo” é aquele que não é clérigo ordenado nem religioso com votos. Não designa algo que é, mas algo que não é. Leigo, então, por definição canônica, não tem identidade nem função na Igreja, por ter sido despojado. Leigo é o que não fez os três votos canônicos de pobreza, castidade e obediência, ainda que, quase com certeza, tenha de cumprir esses votos e até vários outros, tanto ou mais que os religiosos instalados em seu “estado de perfeição”.

Leigo é o que não pode presidir a “fração do pão”, a ceia de Jesus, a memória da vida. Leigo é o que não pode dizer, em nome de Jesus, de maneira efetiva: “Irmão, irmão, não te aflijas porque estás perdoado e sempre o estarás. Ninguém te condena, não condenes a ninguém. Vai em paz, vive em paz”. Leigo, que não pode dizer a um casal apaixonado: “Vou abençoar o seu amor; seu amor, enquanto ele durar; é um sacramento de Deus”.

Leigo, o que na Igreja não tem nenhum poder, porque eles lho roubaram, o despojaram dele. Aqueles que se apoderaram de todos os poderes são chamados de clérigos, ou seja, “os escolhidos”. Tinham sido escolhidos pela comunidade, mas logo depois escolheram a si mesmos e disseram: “Nós somos os escolhidos de Deus”.

Não sou leigo nem quero sê-lo, porque não acredito numa Igreja tripartite de religiosos, clérigos e leigos, cristãos com status e cristãos peões, de classe dirigente e massa dirigida. Jesus não instituiu classes; pelo contrário, acabou com elas todas… E ninguém que conheça algo do Jesus histórico poderá dizer que aos “Doze” -que logo depois foram chamados apóstolos- Jesus os nomeou dirigentes, menos ainda como classe dirigente com direito a sucessão.

Ao máximo, como judeu que era, Jesus os designou como imagem do Israel sonhado das doze tribos, do povo reunido de todos os exílios, do povo fraterno, libertado de todo e qualquer senhor. (E, além disso, que dizer dos “setenta e dois” que Jesus também escolheu e enviou a anunciar que outro mundo é possível? Como é que eles não tiveram sucessores? A alguém deve ter interessado que eles os não tivessem, talvez para que o poder não fosse repartido). Jesus não era sacerdote, mas nem por isso Ele se considerou leigo e a ninguém de nós ele chamou com esse nome. Esse nome LEIGO é uma falácia.

Há vinte anos que eu vejo e digo isso. Por que, então, não abanonei até agora os votos e o ministério? Simplesmente porque era bastante feliz com o que vivia e fazia, e pensava que não muda nada de importante por uns votos a mais ou uns cânones a menos. E agora que, pelas circunstâncias, deixo os votos e o sacerdócio, continuo a pensar a mesma coisa: que “leigo” é uma denominação clerical e que, na Igreja de Jesus, é preciso deixar de falar de clérigos e leigos, isto é, superar de vez e radicalmente com o clericalismo.

Falar de clérigos e de leigos na Igreja é uma fraude ao Novo Testamento, pois esses termos não são usados, nem sequer uma vez, nem nos Evangelhos nem nas Cartas de Paulo, nem em nenhum outro livro do Novo Testamento. É utilizado, sim, o termo grego “láos” (povo), do qual provém o termo “leigo”, mas o termo “laos” designa toda a Igreja, não uma suposta “base eclesial” informe e inculta.

A toda a Igreja, o Novo Testamento nos chama “povo de Deus” (1 Pedro 2:9-10), e a todos os crentes nos chama “templo de Deus” (1 Pe 2.5, 1 Cor 3,16) “sacerdotes santos” (1 Pd 2,5), “escolhidos” e, acima de tudo, “irmãos”. Todos somos povo, templo, sacerdotes, eleitos, irmãos: e o somos sem outra distinção que a biografia misteriosa de cada um, com seus dons e suas feridas.

Falar de clérigos e leigos também é uma fraude aos primeiros séculos da Igreja, pois esses termos não aparecem na literatura cristã até o século III. Durante os primeiros dois séculos não havia “leigos” na Igreja, porque ainda não existia “clero”. Então, a Igreja foi sacerdotalizando, clericalizando, e assim surgiu o laicado que não é senão o despojo, o resto do que o clero levou. Nunca teria havido “leigo” na Igreja se não tivesse havido primeiro “clero”.

Mesmo mais perto de nós, falar sobre o clero e os leigos é uma fraude ao sonho implícito no Concílio Vaticano II, que, na Constituição Lumen Gentium, inverteu a ordem tradicional e tratou primeiro sobre a Igreja como povo de Deus e, em seguida, dos ministros hierárquicos. Primeiro, o povo; depois as funções que o povo considere adequadas. Os bispos, presbíteros e diáconos nunca deveriam se constituir em “hierarquia” (poder sagrado); são apenas funções decorrentes da comunidade e por ela devem ser reguladas. A hierarquia só representa a Deus se representa a Igreja – e não o inverso.

Falando do clero e dos leigos é, em suma, uma fraude a Jesus, porque ele rompeu com a lógica e os mecanismos de quem se refugiou na Lei e no Templo e se haviam erigido a si mesmos como donos absolutos da verdade e do bem. Jesus lhes disse: “Deus não quer isso. Deus quer curar as feridas e que sejamos irmãos”. E por isso eles o condenaram.

Doze séculos depois veio Francisco, que nunca se rebelou, por pavras, contra a ordem clerical e não a quis criticar, mas que, por alguma poderosa outra razão, apesar de toda a sua humildade, se recusou a ser clérigo e, com a doçura e a firmeza que o caracterizava, impediu enquanto pode que se reproduzisse em sua fraternidade a divisão entre clérigos e leigos. E quando já não conseguia impedir, seu corpo e sua alma adoeceram e ele morreu aos 45 anos.

Uma vez, quando ele morava com alguns irmãos num eremitério pobre, chegou, de visita, uma ilustre senhora que pediu para ver a capela, a sala do capítulo, o refeitório e o claustro. Francisco e seus irmãos a levaram para uma colina próxima e lhe mostraram toda a superfície da terra que podiam abarcar e lhe disseram: “Este é o nosso claustro, senhora”. Isso era como dizer: “Nós não queremos ser monges, nem religiosos, nem leigos, nem clérigos. É outra coisa, Senhora. Nós queremos viver como Jesus”.

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