Implicações religiosas das recentes descobertas da ciência

[Publicado pelo IHU, 7 dez 2010] “Teologicamente, a questão crucial está em torno da noção de revelação. Se o divino vem revelando criatividade e sentido em toda a história da criação ao longo desses bilhões de anos, por que restringir a autonomia do divino aos limites de tempo e cultura religiosamente validados?”

A análise é de Diarmuid O’Murchu, sacerdote, psicólogo social e membro da Congregação Missionária do Sagrado Coração. O’Murchu trabalhou na Irlanda e na Inglaterra e tem diversas obras sobre a formação na fé e a vida religiosa à luz das novas descobertas da ciência e das tentativas de enfrentar e resolver o agravamento da crise ecológica. Entre seus livros estão “Quantum Theology”, “Evolutionary Faith” e “Reclaiming Spirituality”.

O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 02-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Galileu foi duramente criticado pela Igreja Católica por endossar a teoria copernicana de que a Terra girava em torno do Sol, colocando o Sol, e não a Terra, no centro do sistema solar. Estávamos despertando para uma nova visão expansiva do universo, embora seriam necessários mais quase 400 anos antes de rompermos o pulso firme do controle eclesiástico e do reducionismo científico.

Em 1650, o notável estudioso da Bíblia, o arcebispo James Ussher, calculou que a criação do mundo ocorreu no dia 23 de outubro de 4004 a.C., e que o fim do mundo ocorreria ao meio-dia do dia 23 de outubro de 1997. Isso se tornou um ensinamento padrão da catequese em muitas partes do mundo cristão até cerca de 1960.

Enquanto isso, uma mudança de mentalidade havia ocorrido no início do século XX com as teorias da relatividade de Einstein e da formulação da teoria quântica. Já não era a Terra que atraía a mente em busca, mas sim o universo como um todo, agora tão complexo e misterioso que falar sobre seu começo ou fim parecia algo com pouca visão de futuro e até mesmo irrelevante.

Com as descobertas do Hubble no final dos anos 1920 e do trabalho pioneiro do padre-astrônomo belga Georges Lemaitre, as sementes foram semeadas para a principal teoria da ciência do século XX: o Big Bang. O termo foi cunhado por Fred Hoyle nos anos 1940, mas só se tornou uma teoria formal depois da descoberta da radiação cósmica de fundo por Arno Penzias e Robert Wilson, em 1963. De um único ponto de energia, há 13-15 bilhões de anos, tudo o que conhecemos na criação hoje começou a se desenvolver, incluindo o Planeta Terra, que evoluiu pela primeira vez há cerca de 4 bilhões de anos.

Aquilo que nos deu provas do Big Bang apresentou outros imponderáveis, particularmente a descoberta da poderosa gravidade nos horizontes distantes do espaço-tempo. A força das ondas de gravidade sugere que grandes quantidades de matéria existem lá fora em algum lugar. Ainda não sabemos nada sobre sua natureza e localização, mas os cientistas são forçados à desconcertante conclusão de que o mundo observável compreende no máximo 10% do universo conhecido, o que significa que não sabemos nada sobre 90% do universo criado.

Foram necessárias descobertas dessa natureza para desafiar a arrogância com que nós, humanos, estudamos e propomos teorias sobre o universo criado. A verdadeira questão, é claro, não é nem a descoberta, nem o estudo, mas sim o poder. Nós sentimos que temos o direito de estar no controle, no controle absoluto, e essa ainda é a força motriz por trás de grande parte da ciência moderna e, lamentavelmente, por trás de uma boa dose de dogmatismo religioso também.

Finalmente chegamos à grande questão: o multiverso. A história pode ser rastreada até 1957, quando um doutorando norte-americano, Hugh Everett (orientado pelo professor John A. Wheeler, da Universidade de Princeton), propôs a possível existência de diversos universos, ao invés de um só. Seu argumento baseia-se em equações matemáticas derivadas da teoria quântica, que também leva à noção de que o universo é autocriador e está preparado para o crescimento e a expansão indefinidos.

Em 1981, a ideia de um multiverso ganhou um novo impulso a partir da teoria inflacionária de Alan Guth. A teoria quântica postula a existência de um espaço vazio original (por isso, o vácuo quântico), que consiste em movimentos de energia (flutuações), a partir dos quais toda matéria é moldada e formada. Guth propõe que as flutuações se manifestaram, inicialmente, como bolhas de espuma e, logo depois do Big Bang, essas bolhas se expandiram (inflaram), e cada uma tornou-se um miniuniverso em seu próprio direito. Uma grande quantidade de evidências experimentais apoia esta proposta. E é fortemente apoiada pelos principais cientistas do nosso tempo, incluindo Andri Linde (Moscou e Stanford), Marin Rees (Cambridge), Brian Green (Columbia), Paul Davies (Sydney).

Considero a adoção da geometria fractal particularmente inspiradora: “As versões mais recentes da teoria inflacionária afirmam que, ao invés de ser uma bola de fogo, o universo é um enorme fractal em crescimento” (Andrei Linde). Fractais são novos e revolucionários conceitos matemáticos em forma de imagem, em que encontramos padrões repetidos enterrados mais e mais profundamente (um pouco como uma boneca russa). Quanto mais desvendamos os padrões observáveis (por meio de simulações em computador), mais encontramo-los repetidos nas camadas subsistentes. É uma exposição maravilhosa do principal princípio da nova física: o todo é maior do que a soma das partes, mas o todo está contido em cada parte. (Para saber mais sobre fractais, veja-se o meu livro, “Quantum Theology”, 2004, pp.51-53).

Como podemos relacionar essas descobertas com o campo da fé, cristã ou não? Eu ofereço alguns pensamentos.

1. Muito antes de a religião evoluir, o homem acreditava que o divino estava intimamente envolvido na criação. Todas as religiões sustentam essa ideia. Seria, então, a criação uma espécie de revelação primária de Deus a nós? Se assim for, precisamos observar atentamente a como entendemos a criação.

2. Nossa tendência humana, especialmente nos últimos 2 mil anos, é a de reduzir a criação a um artefato humano, que podemos usar e subjugar à nossa vantagem. Todas as grandes religiões, de uma forma ou de outra, endossa essa orientação. Consequentemente, não podemos mais aceitar que as compreensões religiosas da criação são, de certa forma, adequadas, espiritual ou teologicamente.

3. Embora os cientistas também assumam o interesse viciante com o poder e o controle, muitas de suas intuições sobre a vida cósmica e planetária podem ser muito mais informadas espiritualmente agora do que as compreensões das religiões formalizadas. Por outro lado, vários desses conhecimentos científicos são congruentes com os dos grandes místicos de todas as tradições religiosas da humanidade.

4. Os teólogos cristãos manifestam um forte interesse com o conceito de creatio ex nihilo (criação a partir do nada). Eles pretendem manter essa crença, a fim de salvaguardar a iniciativa divina e, presumivelmente, sua compreensão do poder divino. Hoje, nós entendemos o nada primordial como um substrato da criatividade efervescente. Talvez, para Deus, a noção de um ponto de partida não é significativa. Que isso não seja outro deslumbramento antropocêntrico!

5. As escrituras de todas as tradições fazem alusão ao fim do mundo. Ele é muito explícito nas tradições cristã e muçulmana. A ciência contemporânea está se movendo rapidamente em direção à noção de um mundo sem começo nem fim. Não seria esse um indicador mais forte da verdade, ao invés da postura antimundo que algumas das principais religiões sustentam?

6. O grande temor – científica e religiosamente – gerado por muitas dessas novas ideias faz referência ao nosso lugar e papel humanos no plano da criação. Está abundantemente claro que não estamos no comando, que não somos a espécie máxima em qualquer sentido, que dependemos de muitos outros aspectos da criação para sobreviver na terra, que somos um pequeno organismo dentre muitos outros e, perturbadoramente, não somos tão sábios quanto nós gostaríamos que fôssemos. Então, qual é o nosso propósito?

7. De todas as respostas a essa questão, a que eu acho mais desafiadora e inspiradora é a proposta de que somos a criação tornando-se consciente de si mesma. A nossa singular vocação – e contribuição para a criação – é aumentar o crescimento da consciência. Uma gigantesca responsabilidade! (Talvez é disso que os grandes místicos trataram e tratam!)

8. Teologicamente, a questão crucial está em torno da noção de revelação. Se o divino vem revelando criatividade e sentido em toda a história da criação, ao longo desses bilhões de anos, por que restringir a autonomia do divino aos limites de tempo e cultura religiosamente validados? De alguma forma, isso não parece fazer mais sentido!

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