Espécie de pop star em Harvard, Michael J. Sandel fala de ‘Justiça’

Os Estados Unidos devem pagar uma reparação pelos anos de escravidão? O serviço militar obrigatório deve ser restabelecido? A ação afirmativa penaliza os brancos pobres?

[Lúcia Guimarães, Estadão, 22 out 11] Essas questões, que não são matéria-prima de vídeos virais ou de redução a 140 caracteres, atraem multidões – seja na Harvard University, seja por meio de palestras que a BBC britânica oferece em podcasts. Se a filosofia tem um pop star – e “pop” aqui está longe de ser derrogatório -, o nome dele é Michael J. Sandel. Para quem duvida do alcance deste professor de filosofia política de Harvard, sugiro simplesmente googlar a palavra “justiça” em inglês. Na primeira página de resultados, chegamos à home page de Sandel, que há 30 anos ministra o curso com tal nome, um dos mais procurados da história de Harvard.

Justiça – O Que É Fazer a Coisa Certa é o título de seu livro que está saindo no Brasil, um trabalho que reflete sua experiência como um dos mais populares professores do mundo – entretanto, como ele alerta, não é uma história de ideias e sim uma viagem pela reflexão moral.

Quando a música do enriquecimento inexplicável para, como aconteceu no crash de 2008, a corrida para sentar nas cadeiras disponíveis pode ser marcada por exames de consciência de sinceridade variável. No país que acaba de produzir o fenômeno Occuppy Wall Street, o livro de Michael J. Sandel satisfaz o crescente apetite pela moralidade na vida pública.

O subtítulo do livro, sobre “a coisa certa”, não deve ser confundido com a simplificação difundida pelos políticos conservadores, cuja habilidade em promover como virtude qualquer ideia que sirva a seus interesses corporativos contribuiu para imobilizar o país enfrentando a pior crise econômica desde a Grande Depressão.

A simplicidade da linguagem é um trunfo de Justiça, o livro e o curso. Com paciência socrática, Sandel vai colocando dilemas morais e éticos e segue questionando as respostas fáceis. Defensor de uma ética comunitária que se choca com a liberdade incondicional do mercado ou a liberdade incondicional das escolhas individuais, Michael J. Sandel define assim o que considera justiça: “Não é só a maneira certa de distribuir coisas. É também a maneira certa de valorizar as coisas.” Veja a seguir, nesta entrevista concedida por e-mail, como Sandel desenvolve o seu do the right thing.

O movimento Occupy Wall Street, que muito rapidamente se espalhou pelos Estados Unidos, reflete indignação com o sistema financeiro. O senhor afirmou no livro que os americanos perdoam o fracasso menos do que perdoam a ganância. O novo movimento poderia sinalizar uma tolerância menor com a ganância?

Os protestos contra Wall Street demonstram uma indignação contínua com a crise financeira e o salvamento dos bancos e de Wall Street. Quando tratei do assunto em Justiça, descrevi como o processo foi injusto. Os responsáveis pela crise financeira lucraram enormemente quando os ventos estavam a favor. Mas, assim que a crise começou, os contribuintes tiveram que pagar a conta. Agora, nós vemos esta onda de protestos que se espalha em todo o país. Acho que é uma ocorrência bem-vinda. Mostra que o ativismo cívico está vivo. Ele vai exercer pressão sobre os líderes políticos, incluindo o presidente Obama, para fazer mais do que fizeram até agora – exigir que os bancos e as instituições financeiras assumam maior grau de responsabilidade pelo que fizeram.

O senhor destaca a associação do movimento conservador com a “política da virtude”. E também trata do contraste entre Barack Obama e John Kennedy. Obama acha que sua fé deve ser levada em conta, Kennedy, o primeiro presidente católico americano, evitava falar de religião. Como o senhor vê hoje estas questões afetando o clima moral no país?
No último capítulo do livro, eu argumento que os liberais e os progressistas não devem renunciar à linguagem moral ou esperar que os cidadãos escondam sua fé quando entram no território público. Como candidato, Obama compreendeu que os argumentos morais e espirituais não deviam ser deixados apenas para conservadores. O fato de que ele era aberto à fé permitiu que fizesse uma conexão com um eleitorado de uma forma que políticos tecnocratas não conseguiriam fazer. Mas ele ainda não conseguiu trazer o idealismo moral e cívico da campanha para sua presidência. Talvez por ter enfrentado logo a crise financeira, ele não deu voz a ideais morais, cívicos e espirituais que os americanos esperam ouvir de um presidente. Acho que este é um dos grandes desafios de sua presidência. Nós precisamos de um discurso público que esteja mais engajado com as questões de justiça, igualdade, desigualdade e o significado de cidadania. Como argumento no livro, nós precisamos de uma nova política do bem comum. Ainda não sabemos se o presidente Obama vai conseguir redirecionar o discurso nacional para essas questões.

O senhor acredita que o debate atual  sobre o aumento da desigualdade nos Estados Unidos vai reforçar o que chama de a conexão entre a distribuição de justiça e o bem comum?
Nos últimos anos, não houve um debate sério neste país sobre a crescente desigualdade econômica. Espero que haja uma mudança em curso. Nós precisamos de um debate moral robusto sobre igualdade e desigualdade. Por exemplo, é justo 1% da população controlar 90% da riqueza?

Como o sistema fiscal americano deve responder ao aumento da desigualdade?
Este é, em parte, um debate sobre a distribuição de justiça. Em vários capítulos do livro, eu examino as filosofias em competição sobre o tema – incluindo o laissez-faire, as teorias libertárias, as teorias igualitárias e teorias que tratam do mérito. Então, sou muito a favor de um grande debate público sobre a distribuição da justiça. Mas há uma questão mais ampla. É sobre o que devemos uns aos outros, como cidadãos, e sobre o caráter da vida cívica que compartilhamos. Um grande fosso entre ricos e pobres acaba por minar o bem comum e corrói os laços que unem as sociedades. Se os ricos e os pobres americanos cada vez mais levam vidas separadas – moram em bairros separados e mandam seus filhos para escolas diferentes -, terão cada vez menos em comum e a possibilidade de uma cidadania compartilhada se esvai. Por isso, considero importante debater o impacto da desigualdade nos espaços comuns da cidadania democrática. Como argumento na conclusão do livro, a distribuição de justiça e o bem comum estão ligados.

O Brasil começou a discutir uma possível reparação pela escravidão, mas este movimento existe há mais tempo nos Estados Unidos. Como este debate pode servir de exemplo para o que o senhor defende – a reflexão moral coletiva?
O debate sobre a reparação pela escravidão levanta uma das questões mais difíceis e importantes da filosofia moral e política. No livro, eu uso a discussão sobre a reparação para examinar concepções conflitantes de responsabilidade moral: Seríamos responsáveis só pelos atos que cometemos como indivíduos? Ou temos uma responsabilidade especial de corrigir os erros feitos por nossos concidadãos, nossos avós, gerações passadas? Isto nos obriga a questionar se a responsabilidade pode ser coletiva e se atravessa gerações. Vários países têm lutado com a questão da reparação. Nos Estados Unidos, discutimos se deve haver um pedido de desculpas oficial e público pela escravidão. E se deve haver reparação e de que forma. Um debate semelhante se passou na Austrália, em relação aos aborígines. E não devemos esquecer o ônus moral de questões como lidar com atrocidades cometidas em tempos de guerra. Tudo isso nos leva a considerar como interpretamos nosso passado, mas também qual é o caráter individual e coletivo da responsabilidade moral. Devemos pensar em até que ponto a nossa identidade é formada pelas comunidades onde vivemos, as tradições que herdamos. Não são perguntas com respostas fáceis. Mas elas ilustram a importância de uma vida pública que se mantém aberta à reflexão moral.

Qual o impacto que o senhor vê em certos elementos da cultura da internet, como anonimato, exibicionismo e ênfase na velocidade? A internet não pode ser também uma aliada de causas cívicas?
A cultura da internet e da rede social são uma bênção e uma praga da vida pública. Por um lado, as redes sociais se tornaram ferramentas valiosas para movimentos sociais e organização política. A Primavera Árabe, naturalmente, é um bom exemplo disso. Ao mesmo tempo, várias características da cultura da internet vão contra a cultura democrática. O que faz falta, hoje, é o hábito de nos engajarmos em argumentos morais razoáveis sem apelar para o insulto e a falta de civilidade. Precisamos desenvolver uma cultura pública e cívica em que as pessoas possam expressar suas convicções mais profundas e, ao mesmo tempo, aprender a ouvir os outros que não pensam como nós. Na maioria dos casos, a internet não promove esta discussão civilizada. O anonimato é parte do problema. Mas culpo também a velocidade e a falta de trocas contínuas que sustentem reflexão. Então, as ferramentas da internet, como blogs e redes sociais, precisam ser complementadas com formas de engajamento comunitário não virtuais. Eu acredito que a internet possa ser um instrumento de educação cívica e discurso moral, mas só se criarmos instituições e modelos de comunidade que vão além, que criarem a responsabilidade exigida pela vida cívica.

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