Política higienista? Não, dever constitucional ~ por Cappelletti, Melo e Borges

[Folha SP, 14 jan 12] Quando o governo procrastina, o resultado é quase sempre desastroso. O descalabro da cracolândia é um desses casos.

Há 15 anos, algumas ruas do centro velho de São Paulo foram tomadas por uma nova droga, o crack. Durante o dia, os usuários desapareciam. Escondiam-se em canteiros de avenidas, em hotéis baratos e em organizações não governamentais (na maioria dos casos, religiosas).

À noite, quando as lojas se fechavam, como no clipe “Thriller”, de Michael Jackson, maltrapilhos e moribundos “surgiam”. Hordas de “batmans”, enrolados em cobertores, atacavam transeuntes e moradores para poder levar algo que permitisse comprar pedras de crack.

Autoridades? Sim, a Polícia Militar fazia rondas. Às vezes, fazia abordagens ou um estardalhaço com algumas dezenas de homens.

A inovação da cracolândia, na alameda Dino Bueno e na rua Helvétia, foi o aperfeiçoamento da desgraça. A três quadras de um batalhão da polícia, viciados e traficantes encontraram o ambiente perfeito para passarem o dia todo.

Em pouco tempo, uma linha de ônibus teve o seu trajeto alterado, e o lugar foi abandonado, tornando-se um ponto de tráfico e uso de crack. Estima-se que 2.000 pessoas tornaram aquela latrina a céu aberto o centro dos seus universos. Imagens de televisão não transmitem a fedentina repugnante.

Durante anos, desleixadamente (e criminosamente, por que não dizer?), nossos governantes permitiram que a pedra fosse negociada livremente. Durante os anos 1990, a “inteligência policial” ignorou denúncias, não fez quase nada. Muita vezes, foi conivente e corrupta.

Hoje, apesar de carente em inteligência e em investigação – esta nova retomada se fez com poucas prisões e nenhum mandado de busca -, a ação da polícia é a esperança de uma nova postura do Estado.

Culpam a ação policial por prejudicar o trabalho das ONGs e dos agentes de saúde. Eles estariam criando vínculos com possíveis adeptos do tratamento. É discutível.

Os agentes de saúde são estagiários e estudantes de diversos cursos universitários, contratados não pela Prefeitura, mas por ONGs terceirizadas. Em geral, são pessoas sem vocação, preparo ou experiência. Vestidos com coletes azuis e com pranchetinhas nas mãos, andam burocraticamente pelas ruas vendendo a mentira de que estão criando vínculos com os dependentes.

Quais vínculos são esses? Eles esperam substituir os pais, os irmãos e os amigos, há muito perdidos pelos “nóias”? Vão acompanhá-los durante todo o tratamento? E depois do tratamento, serão seus melhores amigos? Não. Sobre esses vínculos, muito pouco pode se esperar.

E agora? Vamos reprovar a ação da polícia? Não! A cracolândia é um misto de problemas. E um deles é de segurança pública.

Óbvio que excessos cometidos por autoridades não devem ser tolerados. Mas isso não tira a obrigação do Estado de estar lá, recuperando a região do domínio do crack e reinstaurando a ordem. O que a Polícia Militar está fazendo agora é apenas o que deveria ter feito há 15 anos – se tivesse feito, hoje não haveria cracolândia com endereço fixo. A operação deve continuar. Política higienista? Não. Dever constitucional.

Óbvio que a polícia não resolverá a dependência química, mas poderá propiciar um ambiente seguro para que as outras formas de ajuda possam chegar a quem necessita. A polícia abre caminho para que os usuários tenham o acesso à saúde, às igrejas, às ONGs e aos familiares.

A internação compulsória também deve ser exercida. Durante um resgate, os paramédicos não perguntam se o acidentado aceita ser encaminhado ao hospital. O dependente precisa dessa ajuda. Talvez ele saia da internação e imediatamente volte para o crack, mas ele tem o direito de passar alguns dias limpo para que retome seu poder de decisão.

Paulo Cappelletti, teólogo, é diretor da Missão SAL (Salvação, Amor e Libertação), atua no tratamento de dependentes há 15 anos, Juliano Melo, bacharel em letras, e Martiniano Borges, sociólogo, diretores do IBTE – Instituto Brasileiro de Transformação pela Educação

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