Paz sem perdão ~ Nilton Bonder

Encravado na liturgia do Dia do Perdão, o Iom Kipur dos judeus, está o Livro de Jonas. Um Livro pouco compreendido cuja notoriedade se dá mais pelo incidente de ser o herói engolido por um grande peixe, do que por seu conteúdo. O enredo do Livro nada mais é do que a banal convocação de um profeta para que sirva de mensageiro de uma advertência do Criador à cidade de Ninive exortando que esta se arrependesse. O profeta reluta em aceitar a intimação divina mas acaba por fim cumprindo-a. A cidade de Ninive se arrepende, o profeta fica deprimido e o Criador lhe dá uma lição de moral mostrando que toda a relação verdadeira implica em responsabilidade e esta, por sua vez, em flexibilidade.

Na realidade, o Livro esta mais preocupado em mostrar uma dimensão da persona de todos nós que é representada por Jonas. O profeta fica deprimido com a missão com a qual é incumbido porque sabe que este D’us de Israel é um D’us compassivo. Um D’us que é capaz de conceder perdão até mesmo a Ninive, cidade da Assíria, arquiinimiga de Israel, é insuportável para um nacionalista ardente como Jonas. Mais que isto, como é comum a textos bíblicos onde o personagem é uma representação de um traço humano, o nome do herói é revelador. Ele é Jonas filho de Amitai. A raiz da palavra “Amitai” é a palavra “verdade”. Jonas-o-filho-da-Verdade não consegue suportar o D’us do arrependimento, o D’us de um olhar distinto para o que já foi rotulado de “o outro”.

Perdoar é um comportamento que exige uma redefinição do outro. Passa pela flexibilização das verdades já assumidas. Jonas fica constrangido por um D’us que abre mão da verdade ou das verdades. Mas o mais doloroso do perdão é que este exige uma redefinição de nós mesmos. É mais fácil que o outro permaneça perverso do que ter que refazer toda a nossa compreensão do mundo e da realidade.

A paz é uma espiral do perdão. Quanto mais dizemos: “eu sinto muito”, menos provavelmente teremos que dizer. Quanto mais precisarmos ouvir “eu sinto muito”, menos provável que o aceitemos.

O problema israelense-palestino fica fora do enquadramento das fotos da mídia do soldado israelense perseguindo a criança palestina. Perseguindo este soldado estão por um lado as ditaduras e o fundamentalismo árabe com suas verdades e por outro o radicalismo religioso e o pânico histórico por segurança presentes em camadas da população israelense com suas verdades. O filósofo Martin Buber dizia que o drama israelense-palestino estava no fato de ambos se apoiarem sobre verdades. E a verdade de um, incontestavelmente, legitima o demonização do outro.

Talvez fosse necessária uma nova partilha da Palestina.. Onde dois povos já existentes – israelense e palestino – convivessem em harmonia pela ordem do perdão; e onde outros dois povos – israelense e palestino – vivessem em conflito preservado pelo zelo de suas verdades. Poderíamos então entender que já há uma paz feita e uma paz ainda por fazer.

Uma paz a se fazer, para constrangimento de todos, na qual o D’us da verdade de um venha a se revelar o mesmo D’us da verdade do outro.

Ou talvez outros tempos venham a chegar onde não se faça necessária qualquer partilha seja entre povos distintos ou dentro de um mesmo povo. Uma cena permanece viva na memória de minha última visita a Jerusalém. Era um dia de celebração para o Islã e a esplanada das mesquitas, onde a verdade do Islã construiu sobre a verdade de Israel, estava repleta por ¼ de milhão de muçulmanos. Num dado momento, desde o bairro judeu da cidade velha, deparei-me com a seguinte vista: os judeus rezavam para o Muro das Lamentações, enquanto os muçulmanos eram visíveis no topo da colina em suas orações e, ao fundo, as igrejas se sobressaiam com suas torres e com os sons de seus sinos. Tive então um estranho insight. Do que é visto desde às alturas, desde a perspectiva deste D’us para quem oram, não há diferença nenhuma entre os tempos messiânicos de harmonia absoluta e estes tempos que vivemos de confronto e conflito. O sonho, a utopia, que perpassa estas três civilizações não se encontra meramente no futuro, mas aqui mesmo, neste lugar… em outro lugar. Aquilo de que os profetas falavam: aqui há outra forma de enxergar a realidade. Este enxergar é toda a distância que existe entre o possível e o impossível deste lugar.

Texto publicado originalmente no: http://www.cjb.org.br

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